Arapaso
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- AM 448 (Siasi/Sesai, 2014)
- Família linguística
- Tukano
Os Arapaso são um povo da família linguística Tukano Oriental localizados no Médio Uaupés, na região do Alto rio Negro, Noroeste amazônico. Em consonância com o padrão de organização social característico dos povos Tukano da região, os Arapaso são um grupo exogâmico, casando-se majoritariamente com membros do povo Tukano, e de descendência unilinear, sendo seus filhos e filhas pertencentes à etnia do pai.
A mito-história arapaso é marcada por conflitos interétnicos e coloniais que ameaçaram mais de uma vez o grupo de extinção – e levaram, inclusive, à perda de sua língua original. Atualmente, são falantes da língua tukano, a mesma da maioria de suas esposas e cunhados.
Embora sua presença na bibliografia etnográfica da região seja residual, os Arapaso guardam conhecimentos míticos e históricos caros ao sistema multiétnico rionegrino, e são lembrados por seus vizinhos e cunhados como um importante grupo de antigos guerreiros, e dominavam um extenso território do rio Uaupés.
Nome
Segundo o mito de origem dos Arapaso, ao chegar nas cachoeiras de Ipanoré, no rio Uaupés, a grande cobra-canoa de transformação (Pamuri-Yukese, em tukano), que trazia a primeira humanidade como num submarino, deparou-se com uma parede de pedra que a impedia de emergir. Então, o antepassado dos Arapaso, munido de uma longa lança, furou a pedra para que a canoa pudesse passar. Por esse ato, o grupo recebeu o apelido de “arapaçu”: nome em nheengatu de uma família de pássaros, conhecido na região como um tipo de pica-pau. Em tukano, língua franca da região, também são comumente chamados por seu apelido de pássaro: Ko’réa. Porém, em seus mitos e rituais, os Arapaso geralmente são referidos por seu nome de origem: Diá Mahsã (diá: rio, mahsã: gente).
Línguas
A língua arapaso não é falada há pelo menos um século, e sobre a mesma restou apenas o conhecimento de pouco mais que algumas palavras avulsas, tais como: mái (pai); e ihyõ (mãe). Tais palavras são lembradas até hoje pelos Arapaso e conferem com os registros do início do século XX apresentados por Alcionílio Bruzzi (1962).
Dentre os possíveis fatores que teriam levado a língua arapaso à extinção, destacam-se as guerras interétnicas pré-coloniais (com forte presença nas tradições orais desse povo), e o impacto cultural e demográfico dos conflitos coloniais e da exploração da mão de obra forçada indígena durante os séculos XVIII e XIX.
Atualmente, os Arapaso falam majoritariamente o tukano, não apenas por ser a língua franca da região do rio Uaupés, mas também por ser aquela de suas esposas, grande parte das quais da etnia Tukano. Muitos arapasos também falam o português e há ainda alguns que falam o nheengatu.
Além disso, os Arapaso compartilham da estrutura social que caracteriza o sistema multiétnico rionegrino, na qual os casamentos costumam se dar entre pessoas de grupos diferentes que, na maioria das vezes, falam inclusive línguas distintas. Dessa maneira, as famílias arapaso são tradicionalmente multiétnicas e multilinguísticas, sendo comum seus membros falarem duas ou mais línguas.
Organização social e política
Os Arapaso fazem parte do mosaico de etnias que compõem o sistema do Alto rio Negro, no qual estão reunidos aproximadamente 27 povos distribuídos entre as famílias linguísticas Tukano Oriental, Aruaque e Nadehup. Trata-se de um emaranhado de relações de trocas materiais, matrimoniais e mítico-rituais que desenham um padrão cultural e de organização social partilhado por grande parte desses povos.
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Os Arapaso não fazem exceção a esse padrão. Assim como os demais, são um grupo exogâmico, o casamento entre membros do mesmo povo sendo tradicionalmente considerado incestuoso, assim como o casamento com certos povos considerados seus irmãos, como é o caso dos Pira-Tapuya. Apesar de haver exceções a essa regra, maior parte das trocas matrimoniais arapaso é feita, efetivamente, com membros do povo Tukano e Tariano, e se organizam de acordo com a terminologia dravidiana de parentesco – segundo a qual, idealmente, um arapaso deveria casar-se com uma de suas primas cruzadas, ou seja, com a filha do irmão de sua mãe ou a filha da irmã de seu pai (MBD e FZD, respectivamente).
Tais trocas matrimoniais ordenam-se tradicionalmente de maneira virilocal, ou seja, as mulheres deixam suas casas para irem viver na comunidade de seus maridos. Por se tratar de povos patrilineares, os filhos e filhas desse matrimônio pertencerão, pois, à etnia do pai.
Temos, portanto, que toda comunidade arapaso é multiétnica e, a princípio, composta principalmente de um grupo de irmãos agnáticos arapaso, vivendo com suas esposas (provenientes de outros povos) e suas irmãs solteiras (que, eventualmente, deixarão sua comunidade para morarem na de seus maridos).
Ainda em conformidade com o padrão cultural dos povos da região, os Arapaso se subdividem em diferentes sibs dispostos hierarquicamente. Ou seja, cada grupo de irmãos agnáticos forma uma unidade com denominação, função e localização espacial próprias. Nesse modelo, esses sibs se organizam hierarquicamente e analogamente à relação entre irmãos – o primogênito cumpre a função de chefe e assume a posição mais alta, enquanto o mais novo cumpre a função de servo e tem a posição mais baixa. Esta ordem também é associada à origem mítica de cada sib: seus ancestrais, que viajavam dentro do ventre de uma cobra-canoa, ao chegarem no rio Uaupés desembarcaram um por vez. O primeiro a descer foi o chefe e irmão mais velho, e assim por diante, até sair o caçula, ancestral do sib mais baixo.
Embora atualmente a estrutura social dos Arapaso não corresponda termo a termo a esse modelo, ela segue muitas de suas orientações e princípios. Devido a acontecimentos mítico-históricos, alguns sibs arapaso se extinguiram, outros surgiram, e outros ainda se mudaram para longe da região. Além disso, a ordem, a origem e os conhecimentos de cada sib são assuntos que envolvem muitas controvérsias e podem variar consideravelmente da perspectiva de um grupo para outro. Até 2019, foram registrados ao menos 8 nomes de sibs arapaso: Siripid’rí; Kore’i Ma’ku; Umuheri; Dyau’ri; Ye’pama’ã; Ye’pami’í; Pinó Ku’tiro; e Diamo (ou Patupuri). Destes, o sib Pinó Ku’tiro foi declarado extinto após uma geração inteira ter tido apenas filhas mulheres – cujos descendentes, dado o sistema de descendência patrilinear, pertencerão à etnia do marido (ver Pederneiras, 2020).
Tendo em vista os acontecimentos do último século, como a chegada dos missionários salesianos, o crescimento das cidades de São Gabriel da Cachoeira e Iauaretê, e a instalação de militares do Pelotão de Fronteiras os grupos locais arapaso sofreram consideráveis mudanças estruturais, que infletiram em sua organização tradicional. A unidade local, por exemplo, que correspondia anteriormente à maloca – grande casa de arquitetura tradicional que comportava uma média de 10 a 12 famílias – foi transformada em comunidade multi-residencial, composta por casas familiares separadas, uma casa cerimonial compartilhada e, geralmente, uma capela cristã.
Atualmente o líder de cada comunidade é chamado de capitão (herança do período militar) e a ele é atribuído o papel de intermediador, tanto das relações internas quanto externas ao grupo. Sua nomeação, todavia, não necessariamente respeita a ordem dos sibs, e depende do consenso de toda a comunidade. Em alguns casos, mudam periodicamente a pessoa responsável pelo cargo, como é o caso da comunidade arapaso de Loiro.
Além do capitão, atualmente as comunidades arapaso têm um membro responsável por ministrar as missas católicas, legitimado pela autoridade salesiana local, e ainda outros que assumem o papel de representantes da comunidade nos movimentos indígenas (organizados em coordenadorias regionais da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN).
Mesmo assim, não se deve inferir dessas transformações que a organização tradicional dos sibs arapaso tenha se tornado obsoleta, muito pelo contrário. A nova configuração das comunidades – com a introdução de autoridades relacionadas à igreja católica, com o estabelecimento da figura do capitão, e com a participação nos movimentos indígenas –, embora interfira diretamente na estrutura social e política desse povo, não se sobrepõe por completo às relações, funções e especialidades de seus sibs. Acontecimentos como os rituais tradicionais, por exemplo, são especialmente ilustrativos da coexistência desses diferentes planos de organização dos Arapaso.
População, localização e território
Segundo o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) de 2017, cerca de 200 arapasos viviam na área das terras indígenas do Alto e Médio Rio Negro, homologadas em 1998 e compartilhadas com mais outras 22 etnias das famílias Tukano, Aruaque e Nadehupe.
A grande maioria dos Arapaso habita as comunidades de Paraná-Jucá, Loiro, Jibari e São José, na região do Médio rio Uaupés. Há ainda algumas famílias morando atualmente nos arredores das cidades de Iauaretê e São Gabriel da Cachoeira, e algumas poucas vivendo em Manaus.
Segundo relatos mítico-históricos, os Arapaso foram um dos primeiros habitantes da região do Médio Uaupés e lá se mantiveram desde então, apontando das cachoeiras de Ipanoré até a Ilha de São João como seu território originário. Por sua paisagem são reconhecidos elementos e lugares sagrados, memorados em seus relatos míticos – como o buraco na pedra das cachoeiras de Ipanoré, por onde emergiu a cobra-canoa de transformação carregando a primeira humanidade; e a montanha-maloca invisível dos waimahsã, chamada wi'í turiro, cenário do relacionamento mítico extraconjugal entre uma mulher e a cobra Bohsé Pinó, gerador da cobra Unurato. Por meio desses caminhos míticos desenhados na paisagem, os povos Tukano guardam sua memória social, relatam sua mito-história e reproduzem seus conhecimentos cosmológicos, como se fizessem a vez da palavra escrita.
Atividades socioeconômicas
O profundo conhecimento dos Arapaso a respeito dos elementos da fauna e flora de seu território, transmitido por gerações, é cotidianamente colocado em prática e aprimorado na coleta de recursos da floresta, no cultivo da mandioca, na pesca e, mais eventualmente, na caça – atividades que compõem a rede de subsistência tradicional desse povo.
As técnicas de pesca arapaso consistem principalmente no uso da malhadeira, do facheio e do cacurí (armadilha tradicional). Já a sua atividade venatória, que ocorre com menor frequência, consiste principalmente na caça com espingarda a caititus, queixadas, pacas e antas.
O cultivo, majoritariamente de mandioca brava, envolve o manejo das capoeiras e a abertura de roças por meio de derrubada de árvores e da coivara. Cada família costuma administrar simultaneamente ao menos três roças: aquela na qual as manivas foram recém-plantadas estão em fase de crescimento; aquela na qual as manivas já foram plantadas há cerca de um ano e estão prontas para a colheita; e aquela recém-aberta e coivarada, onde está sendo feito o plantio das manivas. Em 2010, esse sistema de saberes e práticas de manejo dos espaços de cultivo dos povos do rio Negro, apresentado aqui de maneira muito resumida, foi reconhecido enquanto Patrimônio Cultural Brasileiro pelo IPHAN (Inscr. nº 20, de 11/05/2010).
A dinâmica cotidiana arapaso envolve uma divisão do trabalho fortemente marcada pelo gênero, cabendo aos homens a pesca e a caça, enquanto as mulheres ficam encarregadas da roça e do preparo dos alimentos. Muitos indígenas apontam o arrefecimento dessa divisão nos últimos anos; porém, ainda que marido e mulher compartilhem mais dos trabalhos, a divisão de responsabilidades se mantém, evidenciada inclusive pela perceptível (e pontuada) diferença de seus conhecimentos em cada “área” – o reconhecido traquejo das mulheres no cultivo da mandioca, por exemplo, fazem delas indiscutivelmente as “donas da roça”. Além disso, alguns interditos orientados por gênero são vistos como essenciais à saúde do coletivo e ao bem-estar social. A menstruação feminina, por exemplo, torna as mulheres mais vulneráveis a doenças e a outros ataques dos seres da floresta, o que as torna mais suscetíveis aos perigos que espreitam as atividades de caça e pesca. Já a participação masculina em atividades femininas, em especial no preparo dos alimentos, é percebida como prejudicial para seu aprendizado de mitos e benzimentos (possível tradução do basesehé para o português, referente a uma série de práticas tradicionais de proteção e cura), imprescindíveis no cuidado de seus familiares.
Histórico de contato
A dificuldade em precisar o momento no qual os Arapaso vivenciaram o primeiro impacto do contato com os brancos provém, principalmente, do extenso sistema interétnico no qual participavam quando chegaram os colonizadores. Através de dados históricos e pesquisas arqueológicas, projeta-se uma enorme rede de relações que conectavam vários povos indígenas, da região do rio Negro até o Orinoco e Japurá-Solimões – rede esta evidenciada, inclusive, nos relatos acerca dos índios Manao do Baixo rio Negro que, no embate com os portugueses no final do século XVII, já se encontravam munidos com instrumentos e armas espanholas adquiridas via essa rede comercial que se estendia até as Guianas.
Nesse sentido, quando estourou a guerra contra os Manao, no início do século XVIII, antes mesmo que os portugueses alcançassem a região do Médio Uaupés, os Arapaso já teriam testemunhado os impactos coloniais pela desarticulação do sistema do qual faziam parte. Especula-se, ainda, que o próprio grupo Arapaso teria se formado tal como é hoje (uma unidade exogâmica pertencente à família Tukano) nesse período de rearticulação do sistema multiétnico rionegrino, durante o qual muitos indígenas subiram o rio Negro para se refugiar da guerra contra os portugueses, ao mesmo tempo em que as redes de trocas estabelecidas com espanhóis e holandeses geravam conflitos internos aos grupos (v. Andrello, 2006 e Vidal, 1999).
Os primeiros relatos da entrada efetiva dos colonizadores portugueses no rio Uaupés, no entanto, diziam respeito às chamadas “tropas de resgate”: expedições do século XVIII que visavam, principalmente, a captura de escravos indígenas. Além desses “exploradores”, também chegaram os missionários carmelitas que, à sua maneira, se somaram às forças de deslocamento dos indígenas da região, ao impor os aldeamentos forçados. Os Arapaso, enquanto um dos primeiros grupos com os quais os colonizadores se depararam ao entrar no Uaupés, foram fortemente afetados por esses processos, que também recebem o nome de “descimentos” – em razão do trajeto pelo qual carregavam indígenas rio abaixo em direção às cidades ou entrepostos comerciais. Aqueles arapasos que conseguiam evitar o trabalho escravo eram levados para aldeias, onde eram submetidos também ao trabalho e à conversão católica.
O fim do Diretório Pombalino, no final do século XVIII, e a passagem da Colônia para o Império, deixou um vazio legal na região do Alto rio Negro que demorou a ser preenchido. A primeira metade do século XIX no Médio Uaupés foi marcada pela ausência do Estado e pelo crescimento do endividamento dos povos da região – prática implicada no sistema de aviamento, que consistia em adiantar mercadorias à população indígena em troca de quantidades absurdas de produtos da floresta. Sempre endividados, os indígenas trabalhavam ininterruptamente para seus patrões, podendo, eventualmente, ser “vendidos” (ou seja, vender suas dívidas) para outros.
A exploração forçada da mão-de-obra indígena no Médio Uaupés atingiu seu ápice durante o ciclo da borracha, no final do século XIX. As práticas de sequestro de familiares no meio da noite, de ataques às malocas, dentre outras tantas violências que marcaram esse período, são capitalizadas na figura de Manduca: popularmente lembrado como grande mandatário dessas atividades na região. As histórias arapaso sobre esse período são várias, e testemunham a constante ameaça de captura sob a qual viviam seus antigos - o que os levou a abandonar as margens dos grandes rios para viver em malocas no interior da floresta, onde não seriam facilmente encontrados por seringueiros.
Nesse contexto de grande exploração e violência, que coincidiu com o abandono das missões carmelitas na região, eclodiram movimentos messiânicos que marcaram a segunda metade do século XIX no Alto rio Negro. Dentre eles, destaca-se o do profeta arapaso Vicente Cristo, conhecido como o pajé dos pajés. Ainda em Ipanoré, em meados do séc. XIX, Cristo aparece nos relatos de Henri Coudreau como grande influente na consolidação do núcleo missionário franciscano nesse local. Em 1883, porém, essa mesma missão foi interrompida violentamente com a expulsão dos freis pelos indígenas locais. Segundo relata Coudreau, os três freis da missão exibiram em púlpito das máscaras rituais do Jurupari, expressamente proibidas de serem vistas pelas mulheres.
O profeta Vicente Cristo será mencionado novamente nos relatos do italiano Ermanno Stradelli (2009), dessa vez já em meados da década de 1880. Nesse período, o movimento encabeçado pelo pajé, agora estabelecido em uma grande maloca no interior do igarapé Japu, viveu seu maior esplendor. Além de ser reconhecido como um poderoso curandeiro, o profeta dizia falar com Tupana (referindo-se ao Deus cristão), a quem pedia a saída dos comerciantes da região, a libertação das dívidas, o fim do trabalho forçado e o envio de novos missionários. Por meio de sua palavra, Vicente Cristo liderou um enorme séquito na região do Médio Uaupés, inclusive um grande número de indígenas da etnia Hup’däh.
Com o fim do ciclo da borracha no início do século XX, emergia uma nova fase “civilizadora”: a chegada dos missionários salesianos na região foi marcada pelo internato das crianças, a condenação das práticas tradicionais e a destruição das malocas, reconfiguradas em comunidades multi-residenciais. A rigidez do regime salesiano é rememorada nos relatos arapaso transmitidos por gerações, que contam sobre a proibição do uso de sua língua em prol do ensino do português nos internatos, a condenação de suas práticas de casamento (incentivando uniões consideradas tradicionalmente incestuosas) e a demonização dos conhecimentos e práticas dos antigos. O internato das crianças também implicou na interrupção da transmissão dos conhecimentos tradicionais, passados cotidianamente dos mais velhos para os mais novos e associado a cuidados que preparam o corpo para receber esses saberes. Esse descompasso geracional acarretou perdas até hoje muito sentidas pelos Arapaso.
As imposições do regime salesiano durante seus primeiros anos na região tiveram profundos impactos na sociologia arapaso, que não haviam ainda se recuperado dos impactos populacionais e culturais das políticas de exploração dos séculos XVIII e XIX. Seus efeitos são perceptíveis nos relatos sobre eles datados do início do século XX: “Uma pequena tribo, em caminho de extinção, e até já perdeu o próprio idioma, falando exclusivamente o dos Tukano, é conhecida por Arapasu, termo da língua geral que indica um pequeno pica-pau” (Bruzzi, 1962: 26-7, baseando-se em relato da década de 1920).
A partir dos anos 1960, o internato salesiano de Iauaretê começa a perder lugar para instituições nacionais, até ser completamente fechado no final da década de 1970, após cerca de 50 anos de existência. Apesar do enfraquecimento de sua autoridade e de reconhecer a violência embutida em muitas de suas práticas do passado, a ordem salesiana continua fortemente ativa na região, e goza do respeito e confiança de muitos dos povos uaupesianos, inclusive dos Arapaso.
O Projeto Calha Norte e as mudanças na legislação indigenista ocorridas na década de 1980 promoveram novas articulações que reestruturaram a região. Os militares do 1º Pelotão de Fronteira se instalaram em Iauaretê, e na mesma década começaram a surgir as primeiras organizações indígenas do Alto rio Negro – tais como a Unidi (União das Nações Indígenas de Iauaretê) e a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), criadas em 1988.
Saiba Mais sobre as Organizações Indígenas do Rio Negro Povo:Etnias_do_Rio_Negro#Terras_e_organiza.C3.A7.C3.B5es_ind.C3.Adgenas
Mitologia
Os primeiros Arapaso, assim como os ancestrais dos demais povos Tukano, chegaram nas cachoeiras de Ipanoré, onde desembarcaram do ventre da cobra-canoa de transformação. Provindos do Lago de Leite (que equivale, provavelmente, ao oceano), a chamada “gente de transformação” viajou pelos rios submersa, navegando a canoa de transformação como um submarino. Ao longo desse trajeto, foram parando em várias malocas, nas quais entravam, dançavam, cantavam e faziam cerimônias através das quais iam se transformando em humanidade. Essas chamadas “malocas de transformação” também estavam debaixo d’água, tanto que a humanidade veio como waimahsã (gente peixe, em tukano). Atualmente, são referidos por waimahsã aqueles seres que ainda habitam essas malocas, distribuídas por toda paisagem rionegrina mas invisíveis aos olhos, exceto aos do xamã. Os waimahsã podem assumir variadas formas (de animais, vegetais ou mesmo rochas), e muitas das dores e doenças que afligem as pessoas são causadas por flechas ou dardos invisíveis lançados por eles.
As histórias míticas dos Arapaso podem ser diferenciadas entre aquelas pré e aquelas pós-emergência da cobra-canoa de transformação. Os mitos da era pré-humanidade são povoados por waimahsãs, narrando histórias de corpos celestiais e de seres antropomórficos em um mundo subaquático. Em contrapartida, as narrativas míticas pós-canoa de transformação falam de um mundo no qual a ordem social e a ordem cósmica já estão estabelecidas e dizem respeito principalmente às histórias dos antigos, seus sibs e grupos de descendência.
Embora essa diferenciação não seja de todo definitiva e muito menos bem delimitada, ela é importante para o entendimento de algumas nuances que perpassam as explicações e especulações míticas arapaso, especialmente aquelas referentes à sua origem e descendência. Esse é o caso do mito de cobra Unuratu: popularmente conhecido pelos povos da região, Unuratu é filho do caso extraconjugal de uma mulher (casada) com um homem-cobra. Depois de viajar até Manaus e Brasília, cobra Unuratu volta como um submarino para a região onde nasceu (no médio Uaupés, próximo à comunidade de Loiro), carregado de riquezas e tecnologias, que estão hoje na cidade invisível dos waimahsã, chamada Witoriro.
Algumas (das poucas) fontes etnográficas sobre os Arapaso apontam que estes se referem à cobra Unuratu como sendo seu avô – termo comumente aplicado aos ascendentes de um grupo. Os próprios Arapaso, porém, pontuam que esse mito ocorreu antes que os ancestrais chegassem na região via canoa de transformação. Ainda assim, Witoriro – onde fica a maloca na qual Unuratu é concebido e para onde retorna depois de descer para as cidades –, fica na região do território Arapaso, bem próximo à comunidade de Loiro, e a complexa relação entre a gente arapaso (que, no Lago de Leite, também eram waimahsã) e esses seres que prefiguram a humanidade, oferece um terreno fértil em analogias de descendência e ancestralidade. Um dos caminhos possíveis de desdobramento dessa relação seria através da associação entre o rio e a cobra grande, muito comum entre os povos Tukano. Os Arapaso, de nome ritual Diá Mahsã (gente do rio), referem-se à sua origem como “filhos do rio” e, analogamente, “filhos da cobra”.
Para contar sobre a história de seu povo, explicar a relação com seu território e ensinar sobre a conformação de seus sibs, os Arapaso, no entanto, voltam-se para os mitos que relatam desde a chegada de seus ancestrais, vindos na cobra-canoa de transformação. Segundo contam os antigos, ao emergirem de um buraco nas pedras da cachoeira de Ipanoré, os humanos primordiais foram desembarcando um por um. Do povo arapaso desembarcaram três ancestrais: Dyako, Dyawii e Kore’i Ma’ku, que ocuparam o território entre Urubuquara até as proximidades da Ilha de São João, no rio Uaupés. Dyako, enquanto mais velho e, portanto, chefe, fez sua maloca nas proximidades de Ipanoré. Dos outros dois, um foi para onde hoje é a comunidade de Santa Cruz do Cabari, no igarapé Japu, e o outro para Aracú Ponta, onde construiu sua maloca no interior da floresta. Apesar dos conflitos interétnicos, dos infortúnios e dos impactos coloniais que vivenciaram ao longo desse tempo, os Arapaso se orgulham de terem permanecido até hoje em seu território originário.
Entre essas adversidades, o mito do suicídio coletivo arapaso no buraco de breu derretido é digno de destaque. Nele, contam como os Arapaso, então um grupo numeroso e muito bravo, estavam sempre em conflito com outros povos da região (em algumas versões, identificados como os Wanano e os Desana). Nessa época, um dos grande guerreiros arapaso era chamado Umuheri, descrito pelos antigos como um homem alto, muito forte e com uma doença de pele. Umuheri ficava na beira do rio, com seus cabelos longos amarrados em um coque no qual caíam todas as flechas atiradas por seus inimigos. Umuheri, então, tirava essas flechas do cabelo e as lançava de volta, derrotando-os. A versão do mito do suicídio arapaso relatada a seguir é oferecida por Valentim, da comunidade de São José:
De Urubuquara até bem próximo da ilha de São João, essa terra é dos Arapaso. Desde a canoa de transformação já decidiram a terra de cada povo. Antigamente tinha muitos arapasos, o pessoal da região sabe bem. Pra cima era dos Tukano e pra baixo, ali pra São Gabriel, era dos Baré. Os cunhados tukano e piratapuya estão aqui com a nossa autorização, em Juquira, Marabitana... Os Hup’däh, esses do Japu, vieram na canoa de transformação também, só que acompanhando os Arapaso. Eles sempre acompanhavam os Arapaso, só que são outra raça um pouco. Em Urubuquara tinham várias malocas, e onde hoje é Santa Cruz do Cabari, no igarapé Japu, também. Em Aracú a maloca ficava mais pra dentro, mais ou menos uma hora de caminhada . Os Arapaso eram muito valentes. Brigavam muito e os outros [de outros povos] começaram a ficar com raiva deles por não os deixarem passar pelo território, por roubarem as mulheres, afundarem as canoas, essas coisas. Começaram então a fazer feitiço para os Arapaso só terem filhas mulheres, assim que meu pai contava. Acho que estragaram mais com o pessoal de Urubuquara, onde o próprio Tuxawa mandou buscar toneladas de breu – porque naquele tempo era tempo da fartura mesmo –, mandou cavar um buraco, mandou fazer uma festa com todos os parentes, até lá de cima do rio. Daí ele próprio enfeitiçou os parentes e começaram a dançar o kaapi wayá [dança do kaapi, bebida alucinógena de uso ritual e tradicionalmente proibida a mulheres e crianças ] ao meio dia . À noite, no meio da dança, as pessoas mesmo já iam pulando dentro do buraco de breu derretido. O chefe mandou colocar jauari [palmeira de tronco espinhoso] em volta da maloca, cercando ela e o buraco, que estava do lado de fora . Mas um resolveu escapar com sua dama. Ficou disfarçando que estava bebendo e às nove da noite falou que ia mijar e saiu com um pau (não sei onde ele conseguiu o pau), desviando dos espinhos. Mas não foi pra longe, ficou ali perto assistindo eles dançando em volta do buraco, e de um em um iam pulando pra dentro do breu derretido. Quando deu a madrugada todos já tinham pulado dentro do buraco. Foi triste. É triste essa história. Então ele ficou em Urubuquara um tempo, mas sentia muita tristeza e pensava muita coisa, então foi subindo até ficar em um lago, logo abaixo de Marabitana. Ele tinha três filhos, lá eles começaram a assar o peixe e descuidaram e o peixe queimou. Quando respeita, a natureza respeita... daí veio tipo cobra, o rio encheu e matou todos, só sobrou um. Morreu o pai, a mãe e os dois irmãos. Daí ele foi subindo e conseguiu uma mulher. Ficou lá para um igarapezinho que sai do Yuricayá [igarapé na frente de Loiro]. Lá teve três filhos e conseguiu arrumar mulher pra eles. Teve netos, cada casal teve cinco filhos. Daí viu que estavam muitos e não dava para ficar numa só maloca, e mandou um filho para Paraná-Jucá, um para Loiro e um para São José. São nossos irmãos maiores, os de Paraná-Jucá e de Loiro. Não sei se foi aí [referindo-se a toda a história do suicídio] que perdemos nossa língua, isso foi antes da colonização. Aqui em São José tinha muita gente! No tempo que aqui enchia já começou a construção da cidade de Belém. Vieram bandeirantes e foi nesse período que começaram a sair. Seringa, piaçava, cipó...daí veio escravidão.
(Transcrição resumida do mito relatado em português pelo arapaso Valentim, no dia 27 de março de 2019, na comunidade de São José, no rio Uaupés – v. Pederneiras, 2020).
Ritual e xamanismo
No que diz respeito às práticas e reponsabilidades de caráter cosmológico, os Arapaso compartilham a mesma estrutura que os demais povos Tukano, dividindo-se de acordo com seus conhecimentos e especialidades. Segundo o modelo proposto por Stephen Hugh-Jones, tais divisões se orientam virtualmente em duas direções: uma daqueles conhecimentos e poderes transmitidos “verticalmente”, ou seja, passados patrilinearmente, de geração a geração, e que envolvem as especialidades tradicionais de cada sib, assim como as relações hierárquicas entre eles. E outra, daqueles conhecimentos e poderes adquiridos “horizontalmente”, no sentido de serem não-hereditários e, portanto, de envolverem relações simétricas entre afins, como é o caso da formação dos pajés (termo também utilizado pelos Arapaso).
Orientando-nos por esse modelo, entendemos enquanto “vertical” os conhecimentos, práticas e funções transmitidos do pai ou tio paterno para seus filhos ou sobrinhos agnáticos. Seguindo a especialidade de cada sib, o menino aprenderá uma gama de conhecimentos e técnicas que exercerá para manter o equilíbrio cósmico e o bem estar de sua família e comunidade. O poder de cada especialista, portanto, respalda-se em sua conexão com seus ancestrais paternos – e nesse sentido, de derivação vertical. A mesma direção aparece na relação entre os sibs, que são escalados hierarquicamente.
As funções e especialidades de cada sib são imprescindíveis em rituais como os de nomeação e os de iniciação masculina. Trata-se de importantes ritos para a conformação dos laços de consanguinidade, nos quais são fortalecidas as relações com os ancestrais tanto espiritualmente – através da nomeação, crucial para a proteção da alma frente aos espíritos da floresta, e para os eventuais processos de cura xamânica, quanto fisicamente – através de restrições alimentares, pinturas corporais e provações físicas que formam o corpo do iniciado enquanto parente. De certa maneira, a presença dos instrumentos do Jurupari nos rituais de iniciação masculina explicita esse propósito de fortalecimento dos laços agnáticos do ritual ao interditar, por um período, a presença das mulheres (expressamente proibidas de ver os instrumentos).
Dentre as especialidades “verticais”, destaca-se as atuações do kumu, mesmo termo utilizado pelos Arapaso. Traduzido para o português como “benzedor”, o kumu é um grande conhecedor dos mitos e de sua efetividade em situações do cotidiano, sendo responsável pela proteção e pela cura dos membros de sua comunidade. Através da recitação de fórmulas míticas, o kumu cria barreiras espirituais protetivas em volta de pessoas e casas (referidas como paris), transfere poderes curativos para plantas, bebidas e cremes utilizados no tratamento de doenças, e neutraliza os potenciais patogêncos dos alimentos. Reconhecido por seu vasto conhecimento, o kumu costuma pertencer aos sibs mais altos e assume uma posição de destaque nos ritos de passagem.
Complementarmente aos conhecimentos “verticais”, a formação “horizontal” da qual derivam os pajés, é permeada por relações de afinidade. Associados muitas vezes à onça (yaí, em Tukano) e ao trovão (buhpó), os poderes do pajé são transmitidos por meio de um intenso treinamento físico conduzido por um outro pajé (que não precisa ser necessariamente seu parente) e requer pagamento. Durante seu treinamento, o jovem aprendiz vive isolado com seu mestre e, através de jejuns, vômitos, abstinências sexuais e o uso de alucinógenos, recebe fisicamente seus poderes – muitos dos quais são inclusive transferidos diretamente do mestre para o aprendiz.
Diferentemente do kumu, que adquire seus poderes através de um treinamento mais “reflexivo” (decorando exaustivamente os mitos, plantas e animais referentes a cada cura), e via relações de consanguinidade (por meio de sua linhagem paterna), os poderes do pajé lhe são transferidos substancialmente (transformando fisicamente seu corpo), e através de outras formas de relação que não apenas de consanguinidade – relações entre aprendiz e mestre e entre o pajé e os espíritos da floresta, muitas das vezes, são referidas em termos de afinidade, por exemplo.
Ainda assim, de modo complementar (embora não sem eventuais tensões), o pajé também é responsável por muitas práticas de cura: utilizando-se de drogas como um tipo de rapé fortemente alucinógeno, ele examina o corpo do paciente e identifica a causa da doença, algumas vezes recorrendo à ajuda de outros espíritos, através do transe ou de sonhos. Depois de feito o diagnóstico, o pajé dá início à técnica de cura, seja recuperando o espírito perdido, ou sugando objetos do corpo do doente e vomitando-os, ou mesmo usando uma técnica que consiste em jogar água no paciente e com isso extrair dele resíduos alimentares (geralmente peixe ou caça) que causaram a doença.
Embora tenha grande importância na manutenção da saúde e do bem estar da comunidade, o pajé é muitas vezes visto com desconfiança. Enquanto o kumu costuma gozar de certo reconhecimento e status (especialmente se pertencente a sibs mais altos), a figura do pajé está envolta de ambiguidade – decorrente de sua tendência a ser mais isolado socialmente (vivendo sozinho em locais mais afastados) e à percepção de que seus poderes usados em favor da comunidade podem ser usados também contra ela. Segundo contam os antigos, muitos pajés no passado tornaram-se líderes em guerras entre grupos, utilizando de seus poderes como armas, e é especialmente temida suas habilidades de enviar raios às comunidades apenas com a força de sua mente.
Essa desconfiança que envolve a figura do pajé também pode ser analisada à luz da orientação “horizontal” em seu poder. Em contraponto às relações hierárquicas de consanguinidade que formam as técnicas do kumu, os poderes do pajé se fundamentam nas relações simétricas entre afins potenciais. Sua proximidade com os espíritos e animais da floresta, inclusive, faz com que uma de suas especialidades seja também a de prover caça e peixes, recursos comumente associados às festas de caxirí e ao dabucurí – ambas celebrações envolvem relações simétricas de afinidade, seja através do compartilhamento da tradicional bebida fermentada de mandioca (o caxiri) entre cunhados e vizinhos; seja por meio do oferecimento ritual de bens como peixes e carnes ao grupo convidado (também composto geralmente de cunhados), como ocorre nas festas de dabucurí (em tukano, po’osé). Eventualmente, o grupo que foi convidado para o dabucurí retribuirá com um convite para um novo dabucurí no qual será sua vez de lhes oferecer bens, fazendo as vezes de anfitrião. Nesse sentido, as celebrações do dabucurí podem também ser analisadas como trocas rituais, ainda que estas estejam espaçadas no tempo.
Aspectos contemporâneos e ameaças
Os Arapaso, assim como grande parte dos grupos Tukano dos rios Negro e Uaupés, atualmente se identificam majoritariamente como católicos. A presença de uma capela em cada comunidade ao longo desses rios é quase uma constante, e a organização das missas, batismos e crismas são articuladas anualmente com as autoridades salesianas da região. Algumas festividades cristãs em especial, provocam ainda um grande deslocamento dos indígenas das comunidade para os polos urbanos de Iauaretê e São Gabriel da Cachoeira, onde são realizadas grandes festas e muitas danças, e que são lembradas pelos Arapaso com muita alegria. A relação entre comunidade e cidade, porém, não se resume apenas a eventos festivos. Desde que se tornou o ponto de apoio do governo para a implementação de programas oficiais de desenvolvimento, a cidade de São Gabriel da Cachoeira vem vivendo uma reestruturação demográfica de consequências notáveis. O grande fluxo de indígenas em direção às cidades, onde ficam geralmente por semanas ou meses na tentativa de conseguirem documentos, aposentadoria, auxílio Bolsa Família, ou ainda renovar seus contratos de professores das escolas indígenas, torna-os mais expostos a doenças (como parasitoses, malária, etc.), ao alcoolismo e a conflitos violentos. Além disso, os índices de afogamento na cidade, especialmente nos períodos de maior aglomeração, são notoriamente altos. Outra ameaça que acompanha essa relação comunidade-cidade é o que o Márcio Meira chama de “aviamento eletrônico” (2017: 102) – trata-se de uma reciclagem do sistema de endividamento que levou um grande contingente de indígenas ao trabalho forçado no passado, e que hoje se reproduz também através do controle dos comerciantes de cartões de banco e do Bolsa Família de indígenas que vivem em comunidades.
Ainda assim, devido à grande distância que separa as comunidades Arapaso de São Gabriel da Cachoeira, as visitas à cidade são mais raras. Portanto, atualmente os Arapaso vivem majoritariamente da produção tradicional de alimentos (da pesca, da caça, da colheita e da roça) – não sendo raro fazerem comparações que evidenciam sua preferência pelo beiju com quinhampira (prato de peixe com pimenta) em detrimento do arroz e macarrão industrializados.
No entanto, os indígenas da região vêm apontando cada vez mais mudanças ambientais, que interferem diretamente em suas atividades substanciais nos últimos anos. A diminuição do número de peixes, o aumento das invasões de caititus nas roças, a redução dos animais de caça, a maior presença de pássaros nos arredores das comunidades e as alterações na dinâmica pluvial (e, consequentemente, fluvial) são algumas das percepções trazidas pelos Arapaso e seus vizinhos que indicam os efeitos da crise climática em seu modo de vida.
Tais observações, minuciosas e bem descritivas, graças à intimidade e ao conhecimento profundo dos Arapaso de seu território, vão ao encontro dos levantamentos feitos pelo projeto de monitoramento das alterações climáticas no Noroeste Amazônico. Fruto da colaboração entre pesquisadores indígenas e não-indígenas, o projeto, iniciado em 2005 com a parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a FOIRN, realiza um monitoramento constante das condições e transformações ambientais de várias áreas da bacia do rio Negro. Com o cruzamento de seus relatórios, ficam evidentes as alterações climáticas que a região vem sofrendo nos últimos anos e como elas repercutem diretamente no modo de vida dos povos humanos e não humanos que nela vivem (ver Cabalzar, 2018).
Fontes de informação
É sabida a intensa produção etnográfica acerca dos povos do Noroeste Amazônico. Desde os anos 1960 até os dias de hoje, a região tem recebido considerável atenção, com trabalhos que contemplam grande parte de seus povos – Tukano, Aruaque e Nadehupe –, e que examinam suas articulações sistêmicas de trocas materiais e matrimoniais, seu compartilhamento de práticas rituais e narrativas míticas, e suas estruturações unilineares e hierárquicas.
Nos últimos anos, essa produção se intensificou ainda mais com trabalhos sendo desenvolvidos pelos próprios indígenas, quer dentro ou fora da academia, trazendo novas contribuições e perspectivas para e sobre os conhecimentos antropológicos. Esse seria o caso das pesquisas de alunos indígenas desenvolvidas em diversas universidades pelo Brasil, assim como dos livros da coleção “Narradores Indígenas do Rio Negro” (viabilizada pela FOIRN), que reúnem relatos míticos de diferentes etnias da região (Tukano, Desana, Tariano, Baniwa, etc.).
Em meio a tão densa produção, é de se surpreender que não haja muitos trabalhos sobre os Arapaso. Um dos motivos talvez esteja relacionado ao tamanho do grupo, pequeno se comparado a seus vizinhos tukano, tariano e pira-tapuya. Os indicativos de grande perda populacional ao longo dos séculos XVIII e XIX levaram alguns pesquisadores a encarar os Arapaso como um grupo a caminho da extinção, ou ainda, da aculturação (devido à perdas culturais como a de sua língua original). Esta é a visão presente nos relatos do início do século XX compilados no livro A civilização indígena do Uaupés, do pe. Alcionílio Bruzzi (1962).
Na passagem do século XIX para o XX, a figura do profeta Vicente Cristo serve como um importante catalisador de informações sobre os Arapaso desse período. Dentre essas, temos os relatos de Henri Coudreau (1887-9) sobre a atuação do pajé na conformação do núcleo missionário em Ipanoré, onde outros arapasos foram aldeados. Foi acompanhando o séquito do profeta que Stradelli (2009) também nos oferece uma das primeiras descrições da região do igarapé Japu, no território arapaso compartilhado com os Hup’däh.
Já na área da etnologia, entre os poucos trabalhos voltados especialmente para os Arapaso estão dois artigos produzidos por Janet Chernela (1988 e 2002), que esteve com eles nos anos 1970. Os temas da perda (de sua língua e de sua história) e da ameaça de extinção são tratados em ambos os textos, que se voltam para o problema da identidade arapaso enquanto um grupo que não mais fala sua língua em um contexto de exogamia linguística (caso do sistema de casamentos uaupesiano, de acordo com a autora). Ademais, esses dois artigos de Chernela trazem o mito da cobra Unurato como principal fonte de análise. Segundo ela, a continuidade e a integridade do povo Arapaso se sustentaria pela identificação que estes fazem da cobra Unurato como seu ancestral comum (indicada ao referenciarem-se à cobra como “avô”). Por meio de sua análise do mito, Chernela também destaca certos aspectos que fariam referência a conflitos históricos vividos pelos Arapaso durante o encontro colonial – a semelhança entre o trajeto feito por Unurato, descendo o rio em direção à cidade dos brancos, e as práticas dos “descimentos” forçados, aos quais os Arapaso foram submetidos no século XVIII.
Atualmente, para além da pesquisa etnográfica que está sendo desenvolvida com o grupo (desdobramento de Pederneiras, 2020), os Arapaso estão envolvidos com projetos de pesquisa e manutenção da região, como na construção dos PGTAs (Programa de Gestão Territorial e Ambiental), por exemplo, e atuam ativamente nas organizações indígenas locais.
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