De Povos Indígenas no Brasil
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“Nosso saber não está nos livros!”

por Luiz Gomes Lana
O depoimento de Luiz Gomes Lana foi coletado em português pela antropóloga Dominique Buchillet (antropóloga, Institut de Recherche pour le Développement en Cooperation - IRD) em Brasília, junho de 1992, e publicado em francês na revista Ethnies. Droits de l’Homme et Peuples autochtones (Paris: Survival International France, n° spécial “Chroniques d’une conquête”, 1993 n° 14, pp. 19-21).


Para nós, os Imiko-masã, “A Gente do Universo”, isto é, os Desana, a humanidade inteira, ou seja tanto os índios quanto os brancos, têm a mesma origem. Quando Pamiri-gasiru, a “Canoa-de-Transformação” chegou em Diá-peragobe wi’í, [Cachoeira de Ipanoré, médio rio Uaupés, região do alto rio Negro] os ancestrais da humanidade, já em forma humana, começaram a sair pelo buraco. O ancestral daqueles que iriam ser os brancos também estava nesta canoa. Ele foi o último a sair. Yebá-gõãmi, o nosso demiurgo, o mandou na direção do sul, dizendo que lá ele poderia fazer a guerra, ele poderia roubar e atacar as pessoas para sobreviver. Para nós, que somos os irmãos maiores dos brancos, ele deu a ordem de ficarmos calmos, vivermos unidos e de maneira pacífica. Mas para o homem branco, ele deu a ordem de ganhar a sua vida pela violência, de fazer a guerra, de matar.

Assim, quando os primeiros brancos chegaram na região, os nossos avôs já sabiam que eles vinham para fazer a guerra, porque Yebá-gõãmi havia dito para o ancestral deles ganhar a sua vida pela violência. Nós, nós somos calmos, nós não fazemos a guerra! Nós vivemos de maneira pacífica. Mas o branco gosta de violência. Ele gosta de fazer a guerra, ele gosta de batalhar, ele gosta de matar, ele gosta de se apropriar das coisas dos outros pela violência. A gente sabe muito bem como ele é violento! Yebá-gõãmi lhe deu uma espingarda como arma. A espingarda é o poder do branco. Yebá-gõãmi lhe disse que ele poderia obter todo o que queria com essa espingarda.

Com o branco, saiu também da Canoa-de-Transformação o missionário. Os dois saíram juntos! É por isso que, quando os nossos avôs viram o branco chegar com a espingarda, eles já sabiam que ele estaria com o missionário. E, de fato, quando o homem branco apareceu aqui, na nossa terra [região do alto rio Negro], ele estava acompanhado do missionário. Nós já sabíamos que o missionário chegaria com o branco porque Yebá-gõãmi o havia dito! Para o missionário, ele deu um livro [a bíblia] para ele poder viver. Por isso, quando os nossos ancestrais viram pela primeira vez o missionário com seu livro, eles já sabiam que esse livro era o poder dele, a sua arma.

Nós sabemos muito bem que o livro [Bíblia] é a arma do missionário. O outro branco possuía como arma uma espingarda. Com essa espingarda ele pratica todo tipo de violência. A gente vê muito bem que Yebá-gõãmi falou a verdade! Ele tinha falado que o homem branco faria sua vida roubando, matando, fazendo a guerra... É isso que nós vemos hoje em dia. Nós vemos o branco entrar na nossa terra à procura de ouro, de cassiterita... Ele entra no nosso território com violência. Ele quer ser o proprietário de todas essas coisas!

Para nós, que somos os irmãos maiores do homem branco, Yebá-gõãmi deu o poder da memória, a faculdade de guardar tudo na memória, os cantos, as danças, as cerimônias, as rezas para curar as doenças... Nós guardamos tudo isso na nossa memória! Nosso saber não está nos livros! Mas ao branco, que foi o último a sair da Canoa-de-Transformação, ele deu o poder da escrita. Com os livros, ele poderia obter tudo o que ele precisaria, ele havia dito. É por isso que o homem branco chegou na nossa terra com a escrita, com os livros. Assim, Yebá-gõãmi havia dito!

Yebá-gõãmi queria também que a humanidade fosse imortal. Ele queria que a humanidade fosse como são hoje em dia as aranhas, as cobras, as centopéias, os camarões. Estes, quando velhos, trocam de pele e voltam a ser jovens. Yebá-gõãmi queria também que a humanidade trocasse de pele, mas ele não conseguiu. Ele havia dado aos ancestrais da humanidade uma cuia de ipadu [Erythroxylum coca var. ipadu] para lamber. Quando eles viram aranhas, escorpiões e outros insetos venenosos na beira da cuia, os ancestrais da humanidade não tiveram coragem de se aproximar. Mas as aranhas, as centopéias, os escorpiões não hesitaram e comeram o ipadu. É por isso que eles trocam de pele quando velhos. É o ipadu que lhes deu o poder de trocar de pele!

Havia também uma grande bacia de água. Yebá-gõãmi mandou os ancestrais da humanidade tomar banho. O ancestral do branco se precipitou, e se banhou. Se os índios, seus irmãos maiores, tivessem sido os primeiros a tomar banho, a pele do seu corpo teria virado branca, como é a pele do homem branco. Mas quando os índios se decidiram a tomar banho, a bacia virou e eles somente conseguiram molhar a planta dos pés e a palma das mãos. É por isso que nós, os índios, temos a planta dos pés e a palma das mãos brancas! O branco, o nosso irmão menor, tem a pele branca porque ele foi o primeiro a tomar banho na bacia. Foi isso o que os nossos avôs contaram!

Entre a bíblia e a espingarda: imagem desana do homem branco

por Dominique Buchillet

Os Desana, cuja autodenominação é Imiko-masã “Gente do Universo”, são um dos 15 grupos indígenas da família lingüística Tukano oriental que moram, com outros povos das famílias lingüísticas Arawak e Maku, na região do rio Negro, noroeste amazônico. Somando aproximando 1.500 pessoas no Brasil, os Desana dividem-se em umas 60 comunidades e sítios espalhados nas margens do rio Tiquié e seus afluentes, como, por exemplo, os igarapés Umari, Cucura e Castanha. Há também algumas comunidades desana em afluentes do rio Papuri, como, por exemplo, nos igarapés Turi, Ingá e Urucu da margem brasileira, e do rio Uaupés, como o igarapé Japurá.

Os Desana estão ligados aos outros povos da região por um estreito sistema de relações matrimoniais e/ou de trocas econômicas e cerimoniais. Torami-kehíri, cujo nome português é Luiz Gomes Lana, autor desse depoimento, pertence ao clã Kehíripõra, os “Filhos do Sonho”, que mora na comunidade de São João Batista no rio Tiquié. Nascido em 1947, Luiz é o filho primogênito de Firmiano Arantes Lana e de Emília Gomes (mulher tukano), e é casado com Catarina Castro (mulher tukano) com quem tem cinco filhos. Torami-kehíri e seu pai já falecido Umusi Pãrõkumu (Firmiano Arantes Lana) são autores da coletânea de narrativas míticas “Antes o Mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõra” (Unirt/Foirn, 1995, 2a. edição; 1a. edição pela Livraria Cultura Editora, 1980). Após vários anos como capitão de São João Batista, ele fundou em 1990 a Unirt (União das Nações Indígenas do Rio Tiquié), uma organização indígena filiada à Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), da qual foi o presidente até 1994. Os principais objetivos da organização eram a demarcação do território indígena e a revitalização da cultura da região.

Em 1992, ele construiu num terreno elevado, próximo de São João, uma maloca no estilo tradicional, que deveria servir de espaço de exposição e para a formação cultural dos jovens. De acordo com a tradição oral dos Desana, comum a outros povos Tukano orientais, os ancestrais da humanidade subiram o curso dos rios Amazonas, Negro, Uaupés e seus afluentes, partindo do Oceano Atlântico numa canoa - a "Canoa-de-Transformação". Durante a viagem, iam parando em numerosas “casas de transformação”, nas quais faziam festas. A viagem sub-aquática na Canoa-de-Transformação é assimilada à humanização e maturação progressiva dos ancestrais da humanidade. Eles saíram por terra, entre as cachoeiras de Ipanoré, no médio rio Uaupés. Foi nesse lugar que a diferenciação entre brancos e índios aconteceu. O ancestral dos brancos foi então em direção ao sul, enquanto os índios subiram o curso dos rios e afluentes procurando um lugar bom para viver.