"Não havia brancos aqui, nem lá em Georgetown"
Narrativa do wapishana José Antônio - aldeia Canauanim (RR) - 1988
Os brancos [paranakaru - literalmente "os do mar", "os que vieram do mar" - com que os Wapishana designam os ingleses, em contraste a karaiwa, brasileiros] chegaram antigamente. Não havia brancos aqui, nem lá em Georgetown. Não. Todos iguais: Aruak, Carib, Wacawai, iguais, todos caboco. Eles não sabiam fazer roça, parece: nunca haviam visto machado, terçado, lima, fósforos, eles nunca haviam visto essas coisas.
Eles viviam por aí, pelo mundo, mas viviam. Eles faziam seu fogo com o que se chama izako, pedra vermelha, pequena. Era diferente o modo como faziam seu fogo. É, mas eles tinham fogo, eles queimavam sua roça, assim eles viviam sempre.
Depois, um dia, aqueles chamados Colombos - da Inglaterra, parece - eles pensaram, pensaram... Seu chefe, outro branco, disse: há terra lá. Eles pensaram, diz-se, até que arrumaram aquele barco de vento; não era movido a motor não, só vento.
Então, eles embarcaram todas as coisas: terçado, roupa, enxada, machado, fósforos, lima, de tudo eles embarcaram. É, eles foram, foram...é, para cá, pelo lado de Georgetown. Mas não havia cidade não. Eles vieram pelo mundo. Trouxeram sua gente, cinco ingleses, com eles. Procuravam a terra. Foram pelo meio do mar [tubaru'o parana, água grande], vieram, vieram, não havia onde descansar. Só vieram, não se sabe por quantos dias, parece. Por muitos dias vieram. É longe aquela Inglaterra, sim! Então, os outros disseram para aquele Colombo: "Ora, mataremos você!”. O chefe disse: “Não, mais um pouco, dêem-me três dias, se não encontrarmos terra, aí vocês me matam.” Eles concordaram. Então, vieram, vieram, e viram mato. Com aquele olho que colocavam, aqueles ingleses brancos mal viam um matinho. "Você vê - eles diziam - terra lá?". "Há gente então". "Nós iremos lá longe". É, mas seu olho de tirar e pôr alcançava lá. Em três dias alcançaram a beira da mata.
Chegaram e encontraram aqueles Aruak lá, Wacawai, moradores de verdade. Então, diz-se, eles nunca haviam visto aquele barco grande. De jeito nenhum! Eles queriam flechar, quase flecharam. Mas parece que aqueles ingleses acenaram com a mão: “não nos flechem!” Eles chegaram, e então vieram para o barco. Mas diz-se que não sabiam a língua, só a sua mesmo. "Nós trazemos coisas - mostraram para eles, assim, assim - para o trabalho: terçado, tudo, machado - eles mostravam - fósforos... “Olhe aqui, assim se faz fogo...". Até que se foram acostumando com o que encontraram, eles já conheciam pedra.
Eles encontraram aqueles Aruak, Carib, Wacawai; é, do nosso jeito de verdade, Wapishana, caboco de verdade. Não eram como os brancos, não: viviam no mato, encoivaravam, cavavam com pedra, da pedra amolada faziam como enxada. Sua casa era no mato, só folha de inajá que levantavam. Não era como nossa casa não! Eram desse jeito. Nós fomos encontrados, nós fomos encontrados. Assim nós fomos encontrados. É o fim.
A narrativa abaixo foi registrada por Nádia Farage (antropóloga, Unicamp) em 1988, quando José Antônio, residente na aldeia wapishana Sawariwao, na Guiana, visitava seus parentes na aldeia Canauanim (RR/ Brasil). Transcrita originalmente em: N. Farage, 1987. As Flores da Fala: práticas retóricas entre os Wapishana (tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Letras, FFLCH/USP). Tradução de Allan Charles, Casemiro Cadete e Nádia Farage.
Uma narrativa Wapishana: os brancos chegaram antigamente
por Nádia Farage
Essa narrativa pertence ao gênero que os Wapishana designam por Kotuanao dau´ao, "aquilo que se conta sobre os antigos". De alta plasticidade temática - que recobre todos os acontecimentos humanos -, o gênero é fortemente reconhecível sob uma forte convenção de adequação, a referência exclusiva ao que é passado e morto, do ponto de vista dos atualmente existentes, Kainaonao. O gênero Kotuanao dau´ao, assim, repousa sobre uma sofisticada concepção de história - em que a experiência do passado se constitui em uma experiência de linguagem -, bem como a efetua, retoricamente: a narrativa cria o passado e, ao mesmo tempo, sua distância em relação à realidade dos vivos.
José Antônio, o narrador, tem, hoje, cerca de 80 anos. Sua idade avançada, aliada a um repertório considerável no gênero Kotuanao dau´ao, faz dele um Kwad pazo, um sábio, de onde deriva a autoridade socialmente reconhecida de sua fala.