De Povos Indígenas no Brasil
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.

"As meninas aprendem sentando perto das mais velhas"

por Fátima Iauanique e Denise Ianairu. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Fátima Iauanique e Denise Ianairu. Foto: Valéria Macedo, 2016.
Fátima Iauanique e Denise Ianairu. Foto: Valéria Macedo, 2016.

Fátima Iauanique — Minha menstruação desceu com 11 anos. Contei pra minha mãe e ela disse que eu ia ter que ficar pelo menos uma semana deitada na rede. Ela me dava só mingau de arroz ou de polvilho. A gente fica em reclusão e não come coisa que tem açúcar, nem sal, nem gordura. Almoço e janta é tudo sem tempero. Pode ser arroz cozido sem sal, frango só cozido, sem gordura. Depois que acabou minha reclusão de uma semana, fiquei mais uma semana assim. Eu queria que passasse logo porque os parentes não podiam me ver, só minha mãe entrava no quarto para levar comida. Eu ficava naquele quarto escuro...

Também tomava remédio caseiro. Minha avó fez um litro, com um monte de raiz. Ela falava que era para tirar a sujeira do corpo, tudinho. Ela disse para eu tomar cinco horas da manhã, de estômago vazio. Até que não era tão ruim, o cheiro é que era forte. Eu tomava tudo e depois botava pra fora para limpar o corpo. A gente fica fraca porque não come nada e ainda põe pra fora, mas você se sente mais leve.

Só que não acaba por aí, porque depois vem o arranhador de dente de peixe-cachorro. Minha avó passou no meu corpo inteiro. Sai o sangue e passa outro remédio no corpo pra tirar tudo de ruim do corpo. Arde porque o remédio é preparado uma semana antes, então fica mais consistente. Mas não pode se mexer, não pode chorar nem fazer nada. Hoje em dia acho que a meninada não tem nem mais força pra isso.

Denise Ianairu — Tem família que faz festa depois da reclusão. Mas aí a menina tem que ficar dois meses em casa. Nesse tempo ela pode trabalhar dentro de casa, ajudar a mãe a fiar algodão, fazer artesanato. Só não pode ficar saindo pra fora de casa.

O trabalho que é só das mulheres é tecer rede. As meninas aprendem sentando perto das mais velhas. Prende no pé e no toco de madeira o fio de algodão natural, que pode ser branco ou avermelhado, meio marrom. Fica bonito! Não é fácil não, tem que seguir a linha retinha. Se entortar, tem que desmanchar tudo. Se desviar do caminho, sai tudo torto.

Quando chega perto da festa o pai organiza a caçada com os parentes. Pode caçar capivara, anta, caititu, veado mateiro, queixada. Mas agora está tudo desmatado na região e os bichos estão sumindo. No dia a dia a gente come mais peixe... matrinxã, pacu, piau, pintado, jau... Acompanhado de beiju e farinha de mandioca. Além de mandioca, a gente também planta abóbora, cana, batata-doce, cara-branco, cará-roxo. Mingau de cará-roxo é muito bom!

O pai convida os caciques das aldeias e eles avisam as pessoas da festa da moça. Quem quiser ir, fica na casa dos parentes. As mulheres fazem o beiju e o mingau. Tem que acordar lá pelas três horas da manhã pra preparar tudo...

Enquanto isso, a moça é enfeitada pela tia. Primeiro pinta ela de jenipapo, com desenho que pode ser de pele de peixe, passarinho, libélula. O rosto é pintado de urucum, fazendo um risco saindo do nariz, tipo um V de lado. Também usa uma tinta que mistura uma resina com carvão em pó. A moça usa colar de miçanga, e cordão de algodão no joelho e no tornozelo. Na cabeça, ela coloca cocar de arara, que espanta espírito que queira a moça.

Quando está pronta, o pai e a mãe saem de dentro de casa com ela. Os convidados ficam lá fora esperando pra ver. O pai fala pra todo mundo e depois tem a música. Os músicos assobiam com um vidrinho e também usam flauta de taquara. Todo mundo vai jogando milho no sol, depois jogam milho na moça.

Pode também ter dança de taquara. Primeiro só das mulheres, esticando e recolhendo a taquara. Depois os homens. Depois juntos. Então fica liberado pra comer no pátio.

Para os meninos com 14 para 15 anos tem a furação de orelha; em agosto mesmo teve. Eles ficam tudo junto numa oca só e um idoso fura os meninos. As meninas não podem ver, então eles fazem à noite. Eu não tive festa de moça nova. Já nasci com sangue fraco, minha mãe disse. Mas nunca cheguei de fazer tratamento em médico. Não tinha carro, era muito difícil antigamente. Desde pequeninha eu sofria muito, saía sangue do meu nariz, doía meus ouvidos, ficava com dor de cabeça. Então tomava remédios caseiros que minha mãe ou minha avó preparavam. Eu ia com elas na mata e aprendi sobre remédios. Pra mim antes era tudo igual, mas fui aprendendo a ver direito aquela folha, aquela ou essa raiz. Algumas têm que cozinhar, algumas têm que colocar de molho, são vários tipos de preparo.

Com 25 pra 26 anos fui me sentindo cada vez mais cansada, com aquele desânimo. Quando comecei a fazer exames, apareceu anemia e que eu estava sangrando. Mas não descia sangue nenhum! Não sei pra onde eu estava sangrando. Não deu sangue nas fezes, nem na urina. Eu ia no posto da aldeia e depois fui pra Cuiabá, onde fiquei na Casai. Mas não descobriam o que eu tinha e minha mãe mandou me buscar pra me levar para o pajé. Ele viu, fez todo o trabalho, depois o benzedor também fez trabalho.

A minha prima, filha do meu tio, se afogou na água. Eu não sei muito bem essa história, mas ela morreu dentro da água. Eu sonhava muito com ela, o espírito dela me incomodava muito. Também sonhava com meu primo, que fazia tratamento aqui em São Paulo e também morreu. No sonho eles vinham me buscar pra viajar com eles. Eu disse que não queria viajar, que estava bem aqui. Aí fui piorando cada vez mais. Depois pajé viu e falou que era eles que estavam me perturbando. Ele tirou coisas de mim, com fumaça de uma folha. Minha cabeça doía muito e ele tirou vela da minha testa.

Fui me recuperando um pouquinho, mas depois me amarraram pra eu não voltar pra Cuiabá. Aqui [região da lombar], doía, doía, doía... eu não conseguia mais levantar da rede nem andar. Eu comia e vomitava. Estava ficando mais fraca, aí minha mãe foi de novo no pajé. Ele tirou barbante de lã das minhas costas; mostrou pra minha mãe. Por isso meu corpo doía tudinho. Também fui tomando remédio. Minha mãe queimava uma folha, negramina, pra espantar os espíritos com a fumaça na casa inteira. Às vezes ela cozinhava essa folha pra eu tomar banho.

Fátima Iauanique — Ela foi ficando cada vez mais desanimada. A bem dizer, ela se isolou. Não queria comer, não queria conversar. Ela me ligava e mandava a caçula me falar que não estava muito bem. Eu contava pra minha patroa e ela falava pra meu patrão, que ia quase toda semana no Dsei de Cuiabá pra ver se dava um jeito de mandar ela pra São Paulo. Em Cuiabá não conseguiram saber o que estava acontecendo e mandaram pra São Paulo. Aqui estão falando que ela tem um tipo raro de anemia.

Caminhos que se encontram, nas aldeias e nas cidades

Valéria Macedo, Antropóloga, professora na Unifesp

Registrei esse depoimento de Fátima e Denise em 8 de setembro de 2016, no Parque do Ipiranga, em São Paulo. Nos cerca de seis meses em que estiveram na cidade, elas foram muitas vezes passear ali, por ser próximo à Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficaram hospedadas durante o tratamento de saúde de Denise. Nos conhecemos na Casai, instituição que frequento há quase dois anos e onde participo de exibições semanais de cinema indígena.

As duas são irmãs por parte de mãe e nasceram na Terra Indígena Bakairi, no estado do Mato Grosso. Fátima foi viver em Cuiabá há duas décadas, onde trabalha na casa de uma família e onde criou sua filha. Ela nunca deixou, porém, de estar ligada à sua família e todos os anos passa algumas semanas na aldeia no período de férias. Quando a irmã Denise precisou vir à São Paulo para tratamento de saúde, Fátima veio como sua acompanhante e ali puderam voltar a viver muito próximas cotidianamente.

Na Casai também fizeram outras amizades. Cada uma de seu jeito, Fátima mais extrovertida e Denise mais tímida, ambas são fonte de alegria e companheirismo para muitos na Casai que enfrentam os desafios de estar numa cidade como São Paulo, onde pode ser muito difícil viver quando não se domina a língua portuguesa, ou não se sabe ler e escrever, ou ainda se as dificuldades do adoecimento são agravadas pela vulnerabilidade dos corpos pela distância dos parentes, das comidas e das atividades que garantem a força de existir. O quarto em que estão essas irmãs bakairi estava sempre cheio de pessoas de diferentes povos, idades e gêneros, para quem elas foram importantes companheiras nessa difícil viagem.

Em nossa conversa aqui editada, elas escolheram contar sobre a preparação do corpo de mulher quando o sangue desce na primeira menstruação. A moça é protegida e preparada por suas parentes mais velhas, para então poder ser festejada por todos. Também contam do corpo com o sangue enfraquecido por outros e dos caminhos incertos para seu fortalecimento, tanto na aldeia quanto nas cidades. Nas cidades ainda falam de encontros e desencontros que viveram, das saudades dos parentes e de comer peixe matrinxã!