"É hora de seguirmos construindo esses laços de poder entre as mulheres"
por Josiane Tutchiauna. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.
Ser mulher ticuna na minha geração é ser mulher guerreira, batalhadora, mulher que trabalha continuamente pela defesa de seu povo, de sua comunidade. Ser mulher indígena e ticuna é ser aquela que mantém, lado a lado com os homens indígenas, o espírito guerreiro dos nossos ancestrais no seu corpo, na sua alma, no seu espírito, sem temer a nada. Hoje eu vejo que os jovens se preparam como se fossem ir para uma guerra; [é] como se essa nova geração de mulheres ticuna, mesmo vivendo em contextos muito diferenciados daqueles em que viviam nossas mães, que deixaram os caminhos para a gente seguir, tornaram-se novas guerreiras. Hoje tentamos manter nossa autonomia. Pouco a pouco, a geração de que eu faço parte está alcançando o objetivo de conseguir um espaço como mulher líder; e de não deixar morrer esse espírito de guerreiras que tinham nossas antepassadas. Hoje, nós, mulheres ticuna, também buscamos igualdade de gênero na política. O objetivo é seguir mostrando que as mulheres também sabem sobre política, dos saberes tradicionais, da cultura, de educação e de saúde; está na hora das mulheres ticuna serem as protagonistas. É hora de seguirmos construindo esses laços de poder entre as mulheres, para nosso conhecimento não acabar. Isso é nossa preocupação. Uma vez unidas, nós teremos um único objetivo: preparar o caminho para as nossas futuras crianças. Queremos mostrar aos jovens que somos ricos sem saber, que não precisamos viver na dependência do sistema capitalista, que controla todo mundo. Hoje temos mulheres ticuna na coordenadoria local da Fundação Nacional do Índio, de cacicas, pesquisadoras, antropólogas, professoras, presidentes de associações, enfermeiras, um dia teremos reitoras de universidade. Ser mulher ticuna hoje é isso: é ser mulher guerreira que luta pelos direitos das mulheres indígenas.
Somar lutas e somar saberes entre as mulheres
por Patrícia C. Rosa, Antropóloga, professora da UFPR e doutora em Antropologia Social pela Unicamp
Josiane Tutchiauna é mulher ticuna, de 36 anos, mãe, pertencente ao clã de pássaro japó, é liderança, militante no movimento indígena, especialmente no âmbito de políticas educacionais de ensino superior e problemáticas que envolvem temas de relações de gênero e sexualidade. Orcinda Ïpüna, de 66 anos, mãe de Tutchiauna, é artesã e pertencente ao clã avaí. Ambas vivem em Bom Jardim, comunidade ticuna em processo de reconhecimento territorial, no município de Benjamin Constant, no Amazonas.
Esses depoimentos nasceram de uma conversa em conjunto realizada na casa de Ïpüna, quando reunidas em torno de seus artefatos tecidos em tucum e outras fibras que utiliza para compor seus cestos, redes e bolsas, estas duas mulheres ticuna enunciavam seus pontos de vistas. Os eixos norteadores de seus depoimentos foram os saberes construídos em conjunto, marcados geracionalmente por trajetos de vida diferenciados que, ao entrecruzarem-se, desvelaram ensejos encorajadores às continuidades das lutas por espaços políticos já conquistados por elas e suas parentas.
Tutchiauna, graduanda em Antropologia Social, iniciou sua trajetória política aos doze anos, quando passou a acompanhar, ao lado de seus pais, o movimento indígena. Momento este em que, ela e sua mãe Ïpïna relembram, que as mulheres indígenas não ocupavam espaços de voz ativa no âmbito dos debates da política indigenista local tampouco assumiam a posição de interlocutoras em pesquisas e projetos que envolviam seus parentes. Ïpüna destaca que um dos espaços de luta conquistados pelas mulheres ticuna são as associações de mulheres, arena em que conquistaram “autonomia”, expressando, assim, sua “força e trabalho”. Já Tutchiauna conta-nos que nesse “longo e difícil trajeto de aprendizado sobre política indigenista”, percebeu que o seu povo precisava de pessoas que se envolvessem com as políticas públicas e as situações vividas pelas mulheres, um dos motivos que a incentivou a participar e seguir engajada no movimento.
Ela e sua mãe falam sobre os desafios de ser mulher indígena no Alto Solimões, cenário que historicamente produziu tensas e violentas relações com os indígenas, e revelam como, pouco a pouco, conseguiram quebrar tabus e se inserir nas lutas ticuna com suas ações entre mulheres.
Os depoimentos foram recolhidos e transcritos em julho de 2016. O depoimento de Ïpüna foi traduzido por Patrícia C. Rosa em conjunto com Tutchiauna.