De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Aline Scolfaro, 2010

Pira-tapuya

Autodenominação
Waíkhana
Onde estão Quantos são
AM 756 (Siasi/Sesai, 2020)
Colombia 400 (, 1988)
Família linguística
Tukano
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Os Waíkhana, regionalmente conhecidos como Pira-tapuya, vivem na região de fronteira entre o Brasil e a Colômbia, às margens do médio curso do rio Papuri e do baixo e médio curso do rio Uaupés. O etnônimo Waikhana significa “povo peixe” e Pira-tapuya é um apelido que ganharam após a chegada dos colonizadores: uma tradução aproximada do nome do grupo para o ‘’nheengatu’’, língua geral amazônica introduzida na região do rio Negro pelos missionários católicos entre os séculos XVIII e XIX. Eles são também chamados de Pinoã Mahsã, “gente cobra”, por outros grupos da família Tukano Oriental com os quais compartilham territórios e mantêm trocas matrimoniais e culturais.

Língua

A língua waíkhana pertence à família linguística Tukano Oriental. Todas as línguas dessa família compartilham muitas características em comum, mas aquela que tem maior proximidade com o waíkhana é a língua kotiria (wanano). Embora o número exato de falantes do waíkhana seja atualmente desconhecido, a língua é considerada em situação de ameaça (Stenzel, 2018), em razão das dinâmicas de mobilidade de famílias waíkhana entre as aldeias de origem e outras localidades no Alto e Médio Rio Negro e do uso crescente da língua tukano como língua franca na região. Assim como toda a população indígena do Uaupés brasileiro, os Waíkhana são fluentes também na língua portuguesa e os que vivem na fronteira costumam falar ainda o espanhol (na Colômbia todos são fluentes no espanhol).

Localização e População

Dividida internamente em vários segmentos ou clãs, a maior parte da população waikhana vive hoje do lado brasileiro da fronteira, atualmente cerca de 850 pessoas. O território tradicional dos Waikhana é o médio rio Papuri e afluentes, onde se concentra grande parte de suas comunidades, tanto do lado brasileiro quanto colombiano – o Papuri serve de linha de fronteira entre os dois países. Mas conforme narram os próprios waikhana, há séculos que alguns de seus subgrupos e clãs saíram do médio Papuri e se dispersaram para outras regiões do Uaupés, sobretudo seu médio e baixo curso, e mesmo pela calha do rio Negro.

Homens cortando e tingindo talos de arumã em frente a maloca da comunidade Waikhana em São Gabriel (Pohsaya Pit), médio Papuri. Foto: Aline Scolfaro, 2010.
Homens cortando e tingindo talos de arumã em frente a maloca da comunidade Waikhana em São Gabriel (Pohsaya Pit), médio Papuri. Foto: Aline Scolfaro, 2010.

As principais comunidades e sítios waikhana no Papuri são Japim (Ñohsõ Nõã), São Gabriel (Pohsaya Pitó), Teresita (povoado sede de missão católica do lado colombiano, onde se concentra a maior população waikhana do Papuri), São Francisco (Wunu Peó, já no igarapé Macucu, lado colombiano); Taracuá (Yuhku Pitó), Tucunaré (Beé Peó) e São Paulo (Sana Kohpedi, comunidade hoje esvaziada). Já entre os cursos do baixo e médio Uaupés estão Uriri (Nanasari Ñoa), Açaí-paraná, São Francisco (Mariwá), Aracú Ponta (Bo’tea Pehta, a maior comunidade waikhana no Uaupés) e Miriti. Parte dessas comunidades no Uaupés foram formadas por grupos Waikhana e Tukano e hoje congregam famílias de ambos os povos.

Nas últimas décadas, muitas famílias também migraram de suas comunidades para outras localidades, como o povoado de Iauaretê, onde hoje vive um grande número de famílias waikhana, e ainda as cidades de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro, além de diversas comunidades multiétnicas no trecho do médio rio Negro. Do mesmo modo, do lado colombiano houve uma migração intensa para a cidade de Mitu. Resulta que os Waikhana constituem hoje um grupo com grande dispersão territorial e com uma população significativa vivendo nos centros urbanos, como acontece com vários outros povos do alto rio Negro. Atualmente estão presentes em sete Terras Indígenas da parte brasileira do Noroeste Amazônico, além das cidades, onde convivem com outros povos tukano e grupos de filiação linguística aruak e maku: Alto Rio Negro, que concentra a maior parte de sua população; Balaio; Cué-Cué Marabitanas; Médio Rio Negro I; Médio Rio Negro II; Rio-Tea; e Jurubaxi-Tea.

Histórico do Contato

Com uma história de contato de quase três séculos, marcada por muita violência, exploração, escravidão, descimentos e deslocamentos forçados, intolerância e atrocidades de toda ordem, o que hoje é a região do Uaupés guarda, à primeira vista, pouco em comum com uma realidade à qual os Waíkhana costumam se referir como o “tempo dos antigos” ou o “tempo das malocas”. Tais expressões remetem a um período anterior à chegada dos brancos, ou, ao menos, anterior à chegada dos missionários salesianos, ordem religiosa que se estabeleceu no Uaupés nas primeiras décadas do século XX, especificamente na parte brasileira, e que foi responsável por algumas das transformações que afetaram de forma mais drástica o modo de vida dos povos da região.

Segundo os Waíkhana, o problema foi que os primeiros padres não conseguiram entender os costumes e o modo de vida de seus antepassados, as festas e cerimônias que seus pais e avós faziam, e assim começaram a perseguir suas tradições “como se fossem coisas do diabo”.

O antropólogo waíkhana Dorvalino Chagas (2001, p. 50) dá uma ideia da situação de temor em que se encontravam os Waíkhana no período em que os salesianos chegaram à região:

Os Waíkhana conheceram o homem branco igual a eles, mas de comportamentos diferentes, incompatíveis com seu modo de pensar. Não acatavam a maneira de viver deles. Visto como dono de vários tipos de doenças que lhes causaram o medo excessivo. Esse medo provocado é que fez os antepassados embrenharem na mata ou nas cabeceiras de igarapés para se ocultar do invasor. Pensavam que nesse esconderijo poderiam viver à vontade. Mas não foi bem assim, pois a devastação da população foram as epidemias como a bisiká (varíola) e o sarapu (sarampo)... Quando os missionários chegaram nessa terra, a partir da primeira década do século XX, pediram aos Waíkhana para morarem nas margens dos rios onde seria fácil a administração de catequese e garantia de proteção contra os não-índios”.

Além de toda a violência, exploração e desmandos cometidos pelos comerciantes, seringueiros e agentes governamentais que controlaram a região até o início do século XX, a população indígena do Uaupés também foi drasticamente afetada pelas doenças e epidemias trazidas pelos brancos. Há histórias de clãs, ou mesmo de grupos inteiros, que simplesmente desapareceram, pois foram completamente dizimados por epidemias de sarampo e varíola - mas muitos deles ainda têm seus nomes citados nas genealogias waíkhana e na relação de nomes oferecida pelos conhecedores. Neste contexto, não é de se estranhar que a chegada dos missionários salesianos tenha representado uma esperança de proteção contra a violência colonial. É por isso que os Waíkhana, assim como outros grupos do Uaupés, se resignaram em abandonar suas malocas, seus rituais, suas flautas sagradas de jurupari, suas caixas de enfeites de dança, dentre outros elementos centrais de sua vida ritual, em troca da proteção oferecida pelos padres.

A Relação com os Salesianos

Através de seu programa de civilização e catequese – implantado estrategicamente em um dos momentos mais críticos e violentos da atuação dos comerciantes e “patrões” na região – os salesianos iniciaram uma investida contra tudo aquilo que era visivelmente valorizado pelos povos da região e que constituía o cerne de sua vida ritual. Já de início queimaram quase todas as malocas que havia do lado brasileiro do Uaupés, forçando os índios a viverem em aldeias nucleadas com casas separadas para cada família. As malocas, grandes casas comunais nas quais chegavam a viver até dez famílias, representavam para os índios muito mais do que uma simples moradia. Elas constituíam o centro de sua vida ritual e o coração do grupo local.

Chamadas de “casa de dança” na maioria das línguas da região (em waíkhana se diz bahsali wu’u) e imbuídas de profundos significados mítico-cosmológicos, eram o espaço por excelência das mais importantes festas, rituais e cerimônias. Percebendo logo a centralidade das malocas para a vida ritual e espiritual nativa, os padres passaram então a combatê-las veementemente, demonizando-as (os religiosos as chamavam de “casas do diabo”) e obrigando os índios a abandoná-las em prol das moradias unifamiliares em aldeias organizadas segundo os preceitos cristãos.

Junto a isso, os missionários passaram a reprimir duramente, pela chantagem e pela força, importantes rituais até então realizados por todos os povos da região, como o ritual de iniciação masculina, em que eram utilizadas as flautas sagradas de jurupari (miniã pona, na língua waíkhana), e outras cerimônias em que se fazia o uso da bebida kahpi (produzida a partir do cipó Banisteriopsis caapi). Os mais velhos contam que em dias de festa e cerimônias os padres entravam nas aldeias virando cochos de caxiri (paidu) e potes de kahpi, destruindo cuias de ipadu (patu) e ordenando o cessar de suas danças e cantos (bahsa), os quais eram acompanhados pelo som de vários tipos de flautas e trompetes. Contam ainda que os religiosos se utilizaram de todo tipo de chantagem para obrigar os seus pais e avôs a entregarem as suas caixas de enfeites de dança (bahsa bu’sa ahkadó na língua waíkhana) e outros ornamentos e instrumentos sagrados utilizados nas festas e rituais.

Através de seus sermões, os padres demonizavam os rituais, o xamanismo e os elementos mais visíveis da cultura nativa, impondo rígidas sanções para aqueles que infringissem as novas regras e resistissem em abandonar tais práticas. Uma das estratégias consistia em negar o acesso a certas mercadorias básicas que a esta altura eram já bem conhecidas pelos indígenas, tais como fósforos, sabão e roupas. Do mesmo modo, o acesso ao batismo e aos cultos católicos; à educação escolar e aos conhecimentos que esta possibilitava – itens da sociedade branca já há muito valorizados e desejados pelos índios –; e, de modo importante, a própria garantia de proteção que os religiosos passaram a representar face à violência e atrocidades cometidas pelos comerciantes e ‘patrões da borracha’, foram também, em grande medida, “benefícios” condicionados à obediência e adequação dos índios às novas regras e valores da veiculados pelo missão.

Organização Social e Política

Moradores Waikhana da comunidade Uriri em exercício de mapeamento de seu território no baixo Uaupés. Foto: Aline Scolfaro, 2010.
Moradores Waikhana da comunidade Uriri em exercício de mapeamento de seu território no baixo Uaupés. Foto: Aline Scolfaro, 2010.

No contexto do Noroeste Amazônico, os Waíkhana estão inseridos em um amplo sistema regional indígena, caracterizado pela existência de uma rede de relações e alianças interétnicas na qual estão envolvidas diversas modalidades de trocas: econômicas, rituais, matrimoniais. Na bacia do Uaupés, osWaíkhana convivem e mantém relações com vários grupos: com alguns eles trocam mulheres, como os Desana, os Tukano e os Tariano (grupo aruak); com outros eles partilham uma “irmandade mítica” que os proíbe de estabelecer trocas matrimoniais, como os Wanano e os Arapaso; e com quase todos os outros, mesmo que não haja hoje muita interação direta, eles se relacionam por meio de uma história de origem comum que os colocam enquanto “gentes” (mahsã) portadoras de uma mesma condição humana. Assim, muitos destes grupos figuram na mitologia de origem waíkhana, ocupando posições que constituem os fundamentos de suas relações atuais.

Como os demais grupos tukano, os Waíkhana são patrilineares e exogâmicos, isto é, os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai e devem se casar com membros de outros grupos, idealmente falantes de outras línguas. Também praticam a patrilocalidade, ou seja, a esposa é quem vai viver e formar a nova família na comunidade do marido. E assim como todos os povos do Uaupés, estão divididos internamente em vários subgrupos (clãs ou sibs), hierarquizados de acordo com uma ordem de senioridade cujos fundamentos se encontram nas narrativas de origem e ocupação do território pelos primeiros ancestrais.

De acordo com membros do clã Wehetada Bahuí, que vivem no médio rio Papuri, e com as análises do antropólogo waíkhana Dorvalino Chagas (Chagas, 2001), os Waíkhana se dividem em três subgrupos mais abrangentes, a partir dos quais derivam as suas séries de clãs. Os três subgrupos, chamados Wehetada, Sõãliã e Wehetada Bahuí, são hierarquizados conforme a ordem de senioridade de seus ancestrais fundadores, os quais se originaram a partir de um ancestral comum. E essa mesma lógica se replica para a série de clãs internas a cada subgrupo e para linhas agnáticas dentro do próprio clã. O primeiro clã de cada subgrupo é chamado de “cabeça”, “chefe” (puhtoro), enquanto os últimos são reconhecidos como antigos “servidores” (peona) do clã de chefes. Os Waíkhana dizem que a relação entre chefes e servidores envolvia respeito e apoio mútuo e os últimos eram os auxiliares dos chefes nos trabalhos das malocas, especialmente na preparação de grandes festas e rituais. Dentre os clãs waíkhanas listados estão: Wehetada, Waikhun (ou Pou), Ñali Pedó, Diami (também chamado de Uhpó, Wayokali ou Shunkumpuã), Manu Kanabudu, Buhkuda, Ñehkantudu, Komepahka, Kãino, Duhkudu, Sõãliã Poné, Wehetada Bahuí, Ñehkantudu Yepupé, Manu Yuhkuphin, Manu Uhashutú, Yehepoali, Bi’kudua, Padakodoa, Ñapa e Poedoa. Mas vale ressaltar que entre os Waíkhana parece haver diferentes formas de apresentar o sistema de clãs, as quais variam conforme o grau de conhecimento do narrador, mas também de sua própria posição dentro desse sistema. Membros de clãs maiores dos Wehetada, por exemplo, parecem levar menos em conta a divisão dos subgrupos e enfatizar uma classificação mais linear dos clãs.

Conforme contam os mais velhos, no tempo das malocas, os laços agnáticos e o sistema de senioridade eram princípios mais estruturantes das relações sociais, do sistema de prestígio e da posição de chefia no âmbito dos grupos locais do que se verifica hoje. O chefe da maloca era também o irmão maior, o “cabeça” do clã, quem detinha a prerrogativa da chefia. Do mesmo modo, através de seu espírito agregador e de sua capacidade retórica, era ele quem zelava pela união e pela harmonia do grupo (formado idealmente por um conjunto de irmãos, suas mulheres e filhos), organizando festas e trabalhos coletivos e incitando as pessoas a viverem bem e com respeito para com os parentes e cunhados.

Com a implementação do modelo de comunidade proposto pelos missionários em meados da década de 1960, as chamadas “Comunidades Eclesiais de Base”, um novo modo de organização sociopolítica passou a vigorar nos povoados indígenas, o qual teve como pedra de toque a instituição de um sistema de cargos comunitários eletivos e rotativos: os postos de “capitão” e de “vice-capitão”, escolhidos por votação, além dos cargos de “animador” e “catequista”. Com isso, novos padrões de relações sociais começaram a se sobrepor às formas tradicionais de organização sociopolítica, assim como estes novos papéis sociais – que hoje incluem também, conforme sugeriu Lasmar (2005, p. 91), os cargos de professor e agente de saúde –, passaram a constituir uma via alternativa para a obtenção de influência e prestígio.

Mas apesar da ideia de comunidade ter sido introduzida pelos missionários, os princípios éticos, políticos e estéticos que os Waíkhana, especialmente os mais velhos, parecem ter em mente quando se referem à noção, remetem ao tempo das malocas e à noção nativa de mahka, palavra waíkhana que designa os sítios habitados e cujos significados transcendem o conceito de comunidade hoje utilizado. Aqui o ideal da agnação e o idioma da senioridade, (ao lado dos princípios da reciprocidade e da aliança), continuam sendo fatores relevantes na política local. Em muitos casos, estes constituem ainda princípios estruturantes do ethos comunitário que informa a vida social, cujos valores são aqueles mesmos que os missionários tentaram neutralizar com a introdução do modelo de comunidade. Em muitas delas, os cargos comunitários foram apropriados e ressignificados pelo próprio sistema tradicional; onde isto não se verifica, o “cabeça” do clã, como os waíkhana costumam chamar aquele que se situa no topo da hierarquia de senioridade, continua sendo reconhecido e respeitado como o “chefe tradicional” e, muitas vezes também, como o “guia” espiritual (kumu) do grupo.

Cortando e tingindo talos de arumã para fazer balaios. Comunidade São Gabriel (Pohsaya Pit) no médio Papuri. Foto: Aline Scolfaro, 2010.
Cortando e tingindo talos de arumã para fazer balaios. Comunidade São Gabriel (Pohsaya Pit) no médio Papuri. Foto: Aline Scolfaro, 2010.

No contexto atual, marcado por um esvaziamento das comunidades em decorrência da migração de muitas famílias para os centros urbanos, os que ficaram parecem mesmo se esforçar para que o elo existente entre os membros do grupo agnático continue vivo. Aliás, muitos dizem hoje que, com todas as transformações ocorridas na região desde a chegada dos brancos, é preciso um esforço constante para que aquilo que restou da vida, dos ensinamentos e da riqueza deixada pelos “antigos” não tenha o mesmo destino que tiveram muitos daqueles componentes mais valiosos e visíveis da “cultura” - alvos privilegiados da repressão missionária.

Cosmologia e Mitologia

Os Waíkhana, assim como a grande maioria dos povos tukano, reconhecem que os seus primeiros ancestrais surgiram no extremo leste da terra, num local chamado Ahpenkõ Taro, Lago de Leite, ao lado dos ancestrais Tukano e Desana. Criados por Uhpó Kõãkhun, Deus Trovão ou Avô do Universo, a partir de resíduos encontrados nos diferentes domínios do cosmos, estes primeiros ancestrais, que no início eram wai mahsã (gente peixe) e não propriamente humanos, chegaram ao Uaupés depois de uma longa viagem subaquática a bordo de uma cobra-canoa, denominada pamulin yuhkusoa, “canoa de transformação. Constituindo, ao mesmo tempo, uma passagem entre distintas dimensões espaço-temporais, ou entre distintos níveis cósmicos, a viagem ancestral do Lago de Leite até as cabeceiras do Uaupés e afluentes, região considerada como o centro do mundo, representa também um longo processo de transformação e desenvolvimento a partir do qual estes primeiros seres ancestrais puderam finalmente alcançar a forma humana. Por isso, eles mesmos ganharam o nome de Pamulin Mahsã, “Gente da Transformação”, aqueles que passaram pelo processo de humanização.

Ao longo da extensa viagem, os ancestrais pararam em diversos locais que são hoje reconhecidos como “casas de transformação”: locais onde obtiveram uma série de artefatos, capacidades e conhecimentos necessários para a sua transformação em seres humanos e para a vida de seus futuros descendentes. Dentre estas aquisições encontram-se aqueles bens materiais e imateriais, tais como ornamentos de dança, objetos cerimoniais, substâncias rituais, rezas xamânicas, cantos, danças, nomes, a língua e as próprias falas que contam a história desta saga ancestral.

Transmitida agnaticamente através das gerações, esta riqueza (doedikhen) é o que passará a compor o patrimônio ritual de cada grupo de descendência, sendo ao mesmo tempo a manifestação e o veículo dos princípios espirituais e das potência envolvidas no processo de transformação/humanização ancestral. Por isso é que as “casas de transformação”, e as riquezas que foram nelas obtidas, são ainda hoje cruciais nos procedimentos xamânicos de constituição da pessoa e de manutenção da vitalidade do grupo, ainda que grande parte de seu aspecto visível e tangível tenha sido eclipsado com as transformações culturais do último século.

As falas que narram a origem waíkhana possuem três momentos distintos. O primeiro momento narra os passos dados pelo Avô do Universo em seu trabalho de criação e incrementação da vida (kahtiró) dos primeiros ancestrais da verdadeira humanidade. Nele encontram-se as bases para alguns dos mais importantes e vitais benzimentos (bahseye), bem como trechos ou falas essenciais para uma operacionalização mais completa e potente do benzimento da alma (hedipona bahseye, quando as crianças recém nascidas recebem seu nome ritual, que é também sua força vital).

O segundo momento remete à grande viagem de transformação dos primeiros ancestrais à bordo da cobra-canoa e é caracterizado por uma fala que refaz todo o percurso da embarcação desde o Lago de Leite até o centro do mundo (no caso dos Waíkhana, a cabeceira do igarapé Macucu, afluente do médio Papuri), passando pelas inúmeras “casas de transformação” existentes ao longo do percurso. O que os ancestrais vivenciam nessas “casas” constitui as bases para a configuração atual do mundo, informando, assim, diversos tipos de procedimentos técnicos, regras sociais e conhecimentos xamânicos hoje fundamentais para a vida das pessoas e dos coletivos waíkhana.

Já o terceiro momento da narrativa representa uma outra etapa da história ancestral, que marca o fim do que a antropóloga Christine Hugh-Jones (1979) chamou de “era pré-descendência”. Esta se inicia após a chegada dos ancestrais waíkhana à última casa, chamada de Hedi Wu’u (Casa do Suspiro) e localizada nas cabeceiras do igarapé Macucu, afluente da margem esquerda do médio Papuri (do lado colombiano). Deste ponto em diante o que vemos é a história de um tempo propriamente humano, marcada pelo crescimento dos Waíkhana enquanto um grupo de descendência exogâmico, pelas alianças matrimoniais com grupos afins e pelas segmentações internas. Do mesmo modo, as histórias dos diversos subgrupos e clãs se particularizam, permeadas por brigas, disputas por prerrogativas, rupturas, deslocamentos e migrações – as quais dão conta de explicar a atual configuração socioespacial do povo Waíkhana, isto é, o modo como os subgrupos e clãs estão hoje distribuídos pelo território. Na dissertação de Dorvalino Chagas é possível encontrar uma detalhada descrição dessas dinâmicas socioespaciais dos Waíkhana (Chagas, 2001). Veja, abaixo, como se inicia essa longa narrativa

Tempo da Criação

Texto editado a partir de versão narrada por Laureano Cordeiro e traduzida por seu irmão menor Marcelino Cordeiro, ambos Waikhana Wehetada Bahuí da comunidade São Gabriel (Pohsaya Pitó), médio Papuri. Laureano faleceu em 2020 em decorrência de complicações causadas pela Covid19

Conta-se que, antigamente, num tempo anterior ao surgimento dos primeiros ancestrais, o mundo era uma casa, uma maloca, em cujo seio corria um rio. Esta casa, que continha todo o universo, chamava-se Tauro Wu’u (Casa da Barragem). Foi Uhpó Kõãkhun, Deus Trovão ou Avô do Universo, quem criou Tauro Wu’u através de seu pensamento. Uhpó apareceu por si mesmo na Casa de Pedra de Quartzo (Uhta Boho Wu’u) e no início era somente ele. Manifestava-se como ‘puro pensamento’ (tu’otuaye bahueye) e foi assim que fez aparecer Tauro Wu’u, a casa-universo. Aí viveram as primeiras ‘gentes’ (mahsã) criadas por ele através do sopro da fumaça do cigarro. Mas essas ‘gentes’ do início, por não terem conseguido viver de acordo com os ensinamentos de Uhpó, foram exterminadas pelo grande dilúvio que assolou Tauro Wu’u no início dos tempos. Teria sido o próprio Uhpó quem decidiu acabar com a sua primeira criação, pedindo a Se’ẽ Pinõ, uma grande cobra que podia também se transformar em pássaro, para que tampasse com o seu rabo a saída de Tauro Wu’u. Com isso, as águas que antes fluíam pela grande maloca se acumularam lá dentro, devastando toda a terra.

Com o desaparecimento de todos os seres, exceto Yairo Kõãkhun, um pássaro-pajé que sobreviveu ao dilúvio protegido sob sua cuia de bronze e pedra de quartzo, Uhpó Kõãkhun se viu novamente sozinho. E de sua morada na Casa de Pedra de Quartzo ele começou a pensar em como poderia fazer para criar uma nova geração de ‘gentes’. Decidiu que era preciso primeiro limpar e ajeitar a casa Dia Tauro, transformando-a num lugar bom e acolhedor para se viver, pois com o dilúvio muitas doenças e perigos haviam sido disseminados pelo mundo. Em seguida, resolveu mudar o nome da casa-universo para Dia Ahpenkõ 'Wu’u (Casa do Rio de Leite) e decidiu que seria este o local onde faria aparecer as novas ‘gentes’ que agora povoariam a Terra.

Com o seu pensamento, Uhpó começou então a preparar as coisas com as quais daria início à sua nova criação. A primeira coisa que ele preparou foi yuido, o suporte de cuia, que colocou com cuidado no centro do pátio de Ahpenkõ Wu’u. Em seguida fez aparecer a ‘cuia da vida’ (kahtidi wahastoa), arrumando-a delicadamente sobre o suporte.

Depois chamou (wa’metiaga) os ‘cigarros da vida’ (kahtidi munoku): o ‘cigarro de transformação’ (pamulin munoku), o ‘cigarro de leite’ (ahpenkõ munoku) e o ‘cigarro de água’ (ahkó munoku). E por fim preparou sãlinopu, a forquilha porta cigarros. Depois de arranjar estes objetos cuidadosamente, colocando cada um no seu devido lugar (os cigarros na forquilha, a forquilha na cuia e a cuia no suporte), Uhpó começou então a benzer, chamando e soprando na ‘cuia da vida’ uma série de substâncias doces, tais como o mel, o leite e o sumo de diversas frutas.

Assim, teria sido o próprio Uhpó Kõãkhun o primeiro a fazer o benzimento de purificação. Mas diz-se que terminando de benzer a ‘cuia da vida’ com leite, mel e sumo de frutas doces, ele ainda não sabia ao certo de que forma poderia fazer para repovoar esta terra, para criar as novas ‘gentes’. Então continuou pensando e resolveu que procuraria por este mundo, pelos quatro cantos da terra, as coisas com as quais poderia criar as novas vidas. E foi procurando por todo o universo, pelos distintos domínios dos cosmos – pelo espaço, pela terra e pela água – que ele finalmente encontrou aquilo que seria o princípio da vida das novas ‘gentes’: o ‘coração’, o ‘sopro de vida’ (hedipona) dos primeiros seres que, mais tarde, se multiplicariam e povoariam a terra, dando origem aos atuais seres humanos.

A viagem de Uhpó pelas camadas do cosmos foi narrada assim pelo kumu Laureano Cordeiro e traduzida por seu irmão, Marcelino Cordeiro:

“Então Uhpó Kõãkhun se levantou e no mesmo instante o seu pensamento se elevou às alturas, chegando até a ‘casa do céu’ (u’muse wu’u), e depois baixou e correu até o leste, onde o sol nasce e para onde as águas correm (dia to’pea). Em seguida, todo o seu pensamento seguiu para a ‘casa do poente’, o oeste, onde os rios nascem e o sol se esconde (dia po’te). Por fim, baixou até o sul e na casa do sul procurou. Uhpó tateava com uma das mãos todo o universo e todos os cantos por onde o seu pensamento corria. E assim ia juntando em sua mão tudo aquilo que conseguia recolher nas casas por onde passava. Quando terminou de procurar, depositou a fina poeira que conseguiu juntar na cuia que havia benzido. E isto era o próprio ‘coração’ (hedipona), a ‘essência da vida’ dos Desana. É por isso que eles são ‘Gente do Espaço’, ‘Gente do Universo’: são os Dehkoli Mahsã, ‘Gente do Dia’. Foi Dehkoli o primeiro a surgir.

Então, vendo que sua jornada pelo universo havia dado certo, Uhpó resolveu percorrer novamente os quatro cantos da terra para tentar encontrar outras coisas com as quais poderia dar continuidade à sua criação. E mais uma vez subiu até o céu, correu para o leste, para o oeste e para o sul, mas desta vez nada encontrou. Então pensou em procurar na terra, na ‘terra de transformação’ (yepá pamulin di’ita). E procurou na terra preta (di’ita niño), procurou na terra branca (di’ita yesedó), procurou na terra vermelha (di’ita sõãno). Em todas essas terras ele procurou, buscando por todo o chão deste mundo as coisas com as quais poderia criar as novas vidas. E enquanto pensava e procurava, foi tateando a terra com uma das mãos, apanhando tudo o que conseguia alcançar. Em seguida, depositou na cuia benzida a poeira de terra que havia recolhido. Fazendo isso, Uhpó estava colhendo o ‘coração’ (hedipona), a ‘essência da vida’ de Dahseido, os Tukano. Por isso é que eles serão Yepá Mahsã, ‘Gente Terra’.

Em seguida, Uhpó se pôs mais uma vez a pensar e sentiu que faltava ainda alguma coisa. Então começou a procurar novamente por todo o universo, por todos os cantos do espaço. Subiu até o céu, correu até o leste, até o oeste e até o sul. Mas nada encontrou. Voltou então a procurar pela terra, pela ‘terra de transformação’. Procurou na terra preta, na terra branca, na terra vermelha. E mais uma vez não encontrou nada. Então decidiu descer até o rio, o rio de ‘água de transformação’ (pamulin ahkó) para continuar a sua busca. E procurou por todo o mundo das águas, tateando com uma das mãos. Tateou a foz, na casa do nascente. Depois procurou pelas cabeceiras, na casa do poente. E foi assim que conseguiu encontrar o outro ‘coração’ (hedipona), a outra ‘essência de vida’, a qual depositou na cuia benzida. Agora eram três ‘corações’, três ‘elementos de vida’ que logo ‘viriam a ser’. Foi assim que Uhpó criou os seus netos; e foi na água que ele nos encontrou: nós somos netos do Waíkhana, ‘Povo Peixe’. Por isso é que temos esse nome, por esse trabalho que fez Uhpó Kõãkhun. Mas também ali, na beira do rio de ‘água de transformação’, é que apareceu Koleinogu, o Arapaço. E é por isso que Arapaço é por nós considerado irmão menor. Mas foram somente estes que surgiram em Dia Ahpenkõ, somente estes vieram de lá. Pois muitos dos outros [das outras etnias] só apareceram em Ipanoré. Em Dia Ahpenkõ Wu’u (Casa do Rio de Leite) eram somente Dehkoli, Yepá, Waíkhana e Koleinogu, que apareceu depois”.

É, pois, de domínios específicos do cosmos que provém a “essência da vida”, o “sopro”, ou a própria “alma” (hedipona) dos ancestrais que darão origem a cada um desses povos. E junto com este princípio vital aparecem também os seus nomes. Esses nomes, que serão posteriormente transmitidos aos seus descendentes, carregarão com eles a “potência de vida” (kahtiró) desses primeiros ancestrais e todo o poder criativo dos domínios de onde eles provêm. Pois é da água que os Waíkhana tiram sua força, assim como os Tukano (Yepá Mahsã) a tiram da terra e os Desana (Dehkoli Mahsã) do ar e dos raios de sol. O ancestral Desana terá a capacidade de voar, de viajar pelo ar e pousar nos topos de árvores e montanhas e o ancestral Waíkhana terá a habilidade e a força necessária para comandar a futura viagem pelo rio de água de transformação. Dizem até que a cobra-canoa, na qual todos embarcarão rumo ao centro da terra, era, na verdade, o próprio corpo de 'Waikhun, o primeiro ancestral Waíkhana (também chamado de Kenein em algumas narrativas). É por isso que os Waíkhana, Povo Peixe, são também Pinoã Mahsã, Gente Cobra, aqueles que surgiram no mundo das águas, no rio de água de transformação.

Festas e Rituais: Entre o Passado e o Presente

Os Waíkhana mais velhos, tanto homens quanto mulheres, costumam lembrar com nostalgia dos tempos em que seus pais e avôs realizavam grandes festas e cerimônias, nas quais todos se pintavam e se paramentavam para dançar e cantar ao som de vários tipos de instrumentos musicais. Descrevem com saudades como eram os dabucuri (pooyé) de antigamente, cerimônias de oferecimento de alimentos e produtos artesanais entre grupos afins e parentes próximos; as festas de kapiwaya, conjunto muito valorizado de cantos e danças executado em ocasiões rituais em que se faz também o uso da bebida kahpi; as cerimônias de iniciação dos meninos com uso das flautas de jurupari; os ritos de iniciação das meninas e as festas de caxiri que os seus antepassados faziam.

As cerimônias de dabucuri e as festas de caxiri constituem ainda hoje elementos centrais da sociabilidade waíkhana para com parentes e cunhados. Também as danças embaladas ao som das flautas cariçu são amplamente praticadas nas comunidades do Papuri e do Uaupés. Alguns grupos locais, especialmente no Papuri, ainda realizam as danças e cantos de kapiwaya, embora em contextos menos ritualizados do que faziam os antigos. Mas outras práticas rituais como o jurupari e a ingestão do kahpi não são mais realizadas pelos Waíkhana. Os mais velhos dizem que esses conhecimentos foram perdidos, que hoje não existe mais entre os Waíkhana quem saiba preparar e benzer o kahpi, nem quem detenha os saberes para realizar a cerimônia de jurupari. E mesmo no contexto de retomada de algumas práticas e no esforço por fortalecer os conhecimentos, a língua e a cultura waíkhana empreendido por alguns de seus clãs nos últimos vinte anos, muitos parecem crer que certas coisas não podem mais ser resgatadas. Pois além dos saberes que se perderam, certas práticas exigem um preparo corporal e espiritual que hoje, segundo dizem, quase ninguém mais possuiria ou estaria disposto a alcançar. Pois com o tipo de vida que agora se leva, seria muito difícil para as pessoas cumprirem certas regras e restrições que estas tarefas e cerimônias exigem, devido às potências que mobilizam.

Contudo, mesmo sem os grandes rituais do passado, os Waíkhana vão prosseguindo na constituição de pessoas e no fortalecimento da força de vida do grupo. Isso se dá através da língua, dos benzimentos, dos nomes cerimoniais, da memória social e das narrativas passadas de geração em geração. Assim, mesmo dispersos por um território tão extenso, os Waíkhana mantêm sua identidade cultural e o vínculo espiritual com o passado ancestral, o que os constitui enquanto um grupo de descendência e um coletivo diferenciado na rede intercultural do Noroeste Amazônico.

Fontes de Informação

  • ANDRELLO, G. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006
  • CHAGAS, Dorvalino S. J. V. O mundo dos Pamulin Mahsã Waíkhana. Dissertação de mestrado. UFPE, 2001
  • LASMAR, Cristiane. De volta ao lago de leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. Unesp, 2005.
  • PEREIRA, Rosilene Fonseca et al. Criando gente no alto Rio Negro: um olhar waíkhana. Dissertação de mestrado. Manaus: Ufam, 2013.
  • SILVA, Aline Scolfaro Caetano da et al. Falas Waíkhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro (rio Papuri). Dissertação de mestrado. São Carlos: UFScar, 2012.
  • STENZEL, Kristine; CEZARIO, Bruna. WA’IKHANA WEHSEPɄ BUUDE WEHẼ GɄ EHSAMII EMO SAÑODUKUGɄ TɄ’OSUAɄ F. O. Rio de Janeiro: Revista Linguística, 2019.