De Povos Indígenas no Brasil
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"Cuidar da saúde não é só tomar remédio, é também cuidar da terra"

por Mairawê Kaiabi

Agora vamos conversar com algumas lideranças e também com algumas pessoas importantes: são os mais idosos que estão aí, já foram também lideranças da comunidade e hoje são nossos conselheiros, já passaram por muitas coisas. A impressão que eu tenho é que estamos deixando para trás pessoas tão importantes e começando a caminhar por um outro caminho, talvez sozinhos, sem eles. Mas acho importante para todos nós essa orientação dos mais velhos. Nós jovens estamos aí aprendendo coisas que os mais velhos não têm acesso, é muita coisa sempre para discutir e por isso falta para eles ter mais informação sobre isso. Então, sobre o que está acontecendo aqui no momento, nós vamos ouvir mais um problema, o da desnutrição, que vem pra nós cuidarmos.

Nós não podemos ouvir e dizer que isso é problema do branco, que ele é que resolve para nós. Hoje, não tem mais branco que resolve para nós. Nós temos que estar juntos pra resolver todos os nossos problemas. Cuidar desses problemas. É por isso que estamos aqui, estamos interessados em saber, estamos interessados em participar desse trabalho.

Bom, vamos falar um pouquinho aqui da fronteira. O trabalho que a gente tem na fronteira também tem alguma coisa a ver com essa conversa que nós estamos tendo aqui. Por quê? Eu acho que tudo isso que está sendo conversado aqui é uma coisa mais geral. Eu costumo virar o mapa do Xingu e o entorno de cabeça para baixo, caraíba não gosta, fala “ah, você está virando o mapa de cabeça para baixo”. Nós temos que nos orientar pelo rio. Está no rio o problema, e o problema está em cima, se você está embaixo de uma árvore, tudo que vem de sujeira, folha, vai cair em cima de você, em cima da sua cabeça. Assim está o problema das fronteiras.

O problema é de todos nós, principalmente de quem está na beira do rio Xingu, do rio Suiá, do rio Manito, do rio Arraia, do rio Kuluene. O branco, o caraíba, está maltratando esse rio Xingu. Todas as cabeceiras estão sendo desmatadas, estão botando muita coisa que a gente não gosta, tem muito boi cagando no rio e o pior, estão jogando muito veneno na água, que vem parar aqui. Pode não ter uma coisa forte agora, não sei como é que está, mas já tem alguma coisa aqui, alguma contaminação no rio. Quanto mais próximo da divisa, o problema é mais forte ainda, porque essa coisa chega até o limite do Parque. É ali que está o problema. E quem sofre com isso?

Talvez a gente agora não esteja sofrendo tanto, mas os animais, o peixe, o macaco já estão sofrendo, e é do que a gente se alimenta. É nossa comida. Às vezes a gente vai caçar lá longe, vê aquele macaco magrinho. Então, tudo isso tem a ver com essa conversa. Você vê o peixe, o gosto dele está diferente do que antigamente. Ele já tem um gosto diferente. Por que acontece isso? Ah, outro fala que é porque o peixe em tal época não fica gordo, é a mudança também de tempo, mudança de clima. Tudo isso muda. O pessoal estava comentando de mudanças no tempo do tracajá pôr ovo. Sei lá o que o mundo dos animais está pensando, está mudando para eles também? Está mudando. Então tudo isso atrapalha não só a nós, mas também esse pessoal aí, os animais. Não adianta a gente só ficar aí cuidando da saúde isoladamente, ter um médico aqui para dar remédio, não é só isso. Esse espaço de manter os nossos produtos é uma coisa tão importante.

Olha pessoal, uma coisa que eu vejo – que é uma grande falha nossa, mesmo quando alguém fala que o problema é a falta de terra boa – é a gente fazer a roça e largar, não plantar. Por quê? “Ah, porque se eu plantar o porco vai comer”. Já que você derrubou por que você não planta? Por que que derrubou então? Eu acho que isso é falha do pessoal.

Antigamente, o pessoal armazenava os produtos da roça, por exemplo, o cará dá para guardar, o milho dá para guardar, mangarito, amendoim, tudo isso dá para guardar. O pessoal comia isso o ano inteiro, varava o ano, vinha a chuva, ninguém estava nem aí. A maneira dos meninos nossos comerem hoje – estou falando porque em casa acontece isso – é uma desatenção com as crianças. A pessoa pode estar fazendo alguma coisa ou então assistindo televisão, ouvindo um disco ou gravador, e a criança está lá mexendo na panela, vê que não tem mingau, não tem beiju, não tem nada.

E nossos meninos, homens, o que eles fazem? Tem muita gente aqui vendo isso, antes nossos meninos de cinco anos de idade já iam lá na beira do rio com a flechinha deles, hoje é mais fácil de pegar peixe com a linha, antigamente ia lá, pegava peixinho, ele mesmo levava para o irmão, assavam e comiam. Hoje é muito raro acontecer isso. Hoje quer saber pelo que eles estão trocando essa alimentação? Eles estão trocando pela bola ou televisão...

Não estou dizendo que está acontecendo só com o filho de vocês, está acontecendo com todos. Vai lá perguntar para o meu filho se ele sabe pescar, com a idade de 10, 11 anos. Vai lá enrola toda a linha, é difícil, isso aí que é mais sério... Essa falta de comida dentro de casa é a coisa mais grave que tem, não para a gente que é adulto, mas para eles, as crianças. Porque é aquela história, o índio não tem hora de comer, muito menos a criança. Eu já vi muita criança procurar comida e não ter. E aí? Então, eu acho que fica claro para nós entendermos o que está acontecendo com o nosso pessoal. Está começando a acontecer. Aqui, nós, por exemplo, vocês podem até rir, mas antigamente nós que trabalhávamos aqui no posto pescávamos no rio, hoje quase nem olhamos para o rio mais. Por quê? A gente na nossa idade não joga mais bola, mas tem esse negócio de você ficar quase doze horas por dia numa reunião, sentado, parece que não faz nada, mas a cabeça está rodando, e aí? Você acha que tem comida pronta lá? Não tem, você acha que alguém foi buscar peixe para você? Não.

Tudo bem pessoal, eu acho que nós podemos participar de tudo, mas nós precisamos aprender como é que podemos dividir o tempo. O tempo de fazer comida, o tempo de cuidar dos filhos. É assim que a equipe das fronteiras trabalha, parece que não é nada, mas tem uma coisa que mexe lá em cima, você vai bebendo água e já está com dor de barriga. E o que a gente se alimenta está ficando ruim, o peixe está ficando ruim. Por quê? Porque ele está doente.

Depoimento recolhido e editado por Maria Cristina Troncarelli

Mairawê Kaiabi, um líder contribuindo para a formação política das novas gerações

por Maria Cristina Troncarelli (educadora com atuação no Parque Indígena do Xingu)

Mairawê Kaiabi chegou ainda criança ao Parque Indígena Xingu, vindo da região do rio Teles Pires, no Pará, onde os Kaiabi eram pressionados por seringueiros e outros invasores de seu território tradicional. Inconformados com a invasão de suas terras, com a situação de escravidão imposta pelos seringueiros e as doenças decorrentes do contato, uma parte da população Kaiabi aceitou a proposta de Cláudio Villas-Bôas para migrar de seu território tradicional para o Parque. Mesmo sendo muito jovem, Mairawê começou, assim como outros Kaiabi, a assessorar Orlando e Cláudio Villas-Bôas na administração do Parque: dirigia barcos e balsas, construía as casas dos postos indígenas criados pelos Villas-Bôas, atuava como rádio-telegrafista, mecânico, além de contribuir para o intermédio das relações políticas entre os povos do Xingu e o contato inicial com outros povos da região, como os Metyktire e Panará.

Durante a juventude, Mairawê aprendeu com os irmãos Villas-Bôas a falar, ler e escrever a língua portuguesa. Nessa época, já sentia a necessidade de aprender diferentes trabalhos com a finalidade de ser útil ao seu povo e a outros povos do Parque: atuou como monitor de saúde e também como professor, alfabetizando alguns de seus filhos e parentes. No final da década de 1970 e início da década de 1980, foi o primeiro chefe de posto indígena, contratado pela Funai, sendo responsável durante anos pela organização exemplar do Posto Diauarum. Foi protagonista na organização do trabalho de fiscalização das fronteiras do Parque, além de ser o principal idealizador e fundador, em 1995, da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), na qual atuou por mais de dez anos como presidente. Durante esse período, Mairawê sempre se preocupou em desenvolver uma articulação política entre os povos do Parque, colocando em pauta nas discussões entre as lideranças temas comuns a todos, como fiscalização territorial, saúde e educação.

Hoje, Mairawê Kaiabi continua atuando na política interna do Xingu, porém no papel de conselheiro e orientador das novas gerações de lideranças. Também participa de reuniões e acompanha alguns cursos de formação de agentes indígenas, principalmente na área de saúde e fiscalização territorial. Além de ser uma liderança prestigiada entre todos os povos do Parque, sua atuação e suas sábias palavras nas reuniões e assembléias se tornaram referência para os jovens que começam a se destacar como novas lideranças. O depoimento a seguir foi editado a partir de uma intervenção de Mairawê no Seminário sobre Desnutrição, realizado em novembro de 2002, no Parque Indígena do Xingu, pela Unifesp, com participação da Atix e do ISA. Em razão de problemas de desnutrição diagnosticados nos povos Ikpeng, Kaiabi, Kisêdjê, Trumai e Yudjá, tomou-se a decisão de reunir lideranças, professores, agentes de saúde, auxiliares de enfermagem, homens e mulheres de cada comunidade para, juntos, identificarem as causas e proporem soluções para a melhoria da nutrição no Parque.